A Gripe Espanhola
Do livro “Taubaté no aflorar do século”, de Oswaldo Barbosa Guisard
A gripe espanhola alastrou-se de modo violento do Rio de Janeiro a São Paulo e por todo o eixo entre as duas capitais do país.
Os jornais da Guanabara davam notícias desalentadoras. Cadáveres eram jogados pelas ruas do Rio de Janeiro pois, nas casas não era possível suportar a putrefação. Eram cenas horríveis. Trocavam-se cadáveres mais velhos por novos nas próprias residências porque os coveiros não davam conta dos enterramentos.
As escolas fecharam-se porque a epidemia não dava tréguas. A nossa Escola da Farmácia de Pindamonhangaba fechou-se também por tempo indeterminado e, nós, os alunos, fomos convocados para prestar os nossos serviços naquelas negras horas de perigo e indecisão. Em Taubaté, o Hospital Santa Isabel não tinha mãos a medir. Os doentes se alinhavam nos corredores das enfermarias, porque não havia leitos mais para coloca-los. Os cuidados eram intermináveis nas horas – dia e noite a luta no atendimento aos gripados. Na CTI foi criado e instalado com urgência um novo hospital para gripados nos salões da antiga fábrica de malhas da Avenida Benjamim Constant. Tudo improvisado na ânsia de auxiliar o hospital Santa Isabel, completamente lotado, e sem nenhuma possibilidade de atender a nenhum doente. Felix Guisard, o presidente da CTI, homem expedito, inteligente, dotado de vastos conhecimentos práticos e de curandeirismo, as fórmulas básicas para serem atendidas os milhares de gripados que procuravam recursos na Companhia Taubaté Industrial. Dizem que ninguém fez falta neste mundo: a morte de Felix Guisard desmentiu de modo categórico esse raciocínio.
Nós e um grupo grande de auxiliares preparávamos os remédios específicos indicados pela experiência do velho “carimbamba” Felix Guisard, e que eram os seguintes: Um purgativo constituído de 0,20 centigramos de calomelanos, seguidos de uma solução de 30 e até 40 gramas de sal de glauber ou sal amargo em trinta centímetros cúbicos de xarope de limão e 120 c.c. de água destilada ou fervida. Mais uma poção com benzoato de sódio, acetato de amônio, tinturas de beladona e acônito e aniodol interno. Em casos de febre insistente, um suadouro forte de cozimento de sabugueiro. Dieta quase total. O doente passaria até fome, bebendo um pouco de chá, cozimento de arroz, somente o caldo, e biscoitos.
Com esse tratamento, muita e muita gente ficou a dever a Felix Guisard a sua existência.
E ele atacava mesmo até casos mais graves, complicados como disenteria, pneumonia, e outros, mandando aplicar injeções de óleo canforado, cafeína, ouro coloidal, esparteína, mandava aplicar sarjadeiras e, enfim, usava a medicina da época, quando não existia nos antibióticos, que tirariam a periculosidade de muitas doenças.
As porções que fazíamos eram preparadas em botijões, esmerilhados, em soluções concentradas, como também fazíamos com sal de glauber para purgativos, de sorte, que não nos custava aviarmos as receitas. Nas horas de pouco movimento fora dos plantões, os demais trabalhavam preparando papeizinhos de calomelanos e cápsulas. A cidade foi ficando deserta. Defuntos eram carregados em caminhões para o cemitério. Em casa, 11 pessoas iam aos poucos caindo febris nas camas. Somente minha mãe resistia à avalanche epidêmica. O mesmo acontecia comigo, graças a Deus; providencialmente.
Oswaldo Barbosa Guisard (1903-1982)
Foi executivo da CTI, vereador e presidente da Câmara. Idealista, participou do grupo fundador da Semana Monteiro Lobato e por 30 anos foi seu principal divulgador, mantendo acesa a sua chama original. Batalhou com perseverança pela preservação e tombamento da Chácara do Visconde, local onde nasceu Monteiro Lobato. Sua fabulosa memória o levou a escrever o livro “Taubaté no aflorar do século, uma grande obra.