EPÍSTOLAS DE UMA ILHA NO MEIO DO ATLÂNTICO
Aproveitando-se a celebração dos 125 anos da abolição da escravidão no Brasil, envio esta epístola com notícias de lugares distantes, onde a abominável instituição foi abolida muito antes, e que ainda que contando com reduzidos recursos naturais, conseguiram superar a desigualdade extrema das relações entre senhores e escravos sem recorrer às armas.
A questão racial no Brasil é um debate histórico que se estende por mais de um século, sem grandes alterações seja em essência – porque os argumentos continuam basicamente os mesmos, seja em sua forma: com discursos variados, vindos de uma classe média intelectual que ainda teima em dizer que não há racismo no Brasil e que a diferenciação é de classe e por mérito, de um grupo menor de intelectuais que denunciam o racismo puro e simplesmente baseado numa associação “natural”da pobreza à raça, de um grupo menor ainda de negros politicamente atuantes contra a discriminação racial, social, cultural, política, etc. Ainda – como há mais de cem anos – a mesma preocupação com a questão religiosa, denunciando manifestações religiosas como o candomblé e a umbanda com feitiçaria, em nome de um purismo bíblico que se dispõe a condenar “comportamentos desviantes” e imorais.
Enquanto isso, em Barbados – a ilha de onde escrevo, localizada no ponto mais ao leste do arquipélago das Antilhas – a curiosidade acerca do fenômeno do racismo brasileiro é uma constante em qualquer palestra que trate da nossa amada pátria por aqui. E as explicações simplistas mais comuns, como: “o Brasil nunca teve leis de segregação como a África do Sul ou os Estados Unidos”, não convencem a uma população composta por 97% de afro-descendentes e que se orgulha de ter um índice de analfabetismo menor do que 1%. Aqui, as pessoas sabem bem que tanto na África do Sul quanto nos Estados Unidos, o número de negros ou afro-descendentes com educação universitária nos anos 50, auge das leis de segregação dos dois países superava o Brasil com ampla diferença. Então como explicar que um país onde o racismo não existe, onde nunca houveram leis de segregação racial não tenha produzido até hoje um presidente negro?
A campanha abolicionista na ilhas caribenhas de colonização inglesa se iniciou nas últimas décadas do século XVIII e cresceu nas primeiras décadas do século XIX, não apenas no Caribe, mas com maior intensidade na Inglaterra. Ao contrário do Brasil, o apelo contra a escravidão contou com o apoio das Igrejas Metodista, Batista, parte da Igreja Anglicana e dos missionários Quakers que pregavam pelo fim da escravidão desde o fim do século XVII. Em 1807 o parlamento inglês votou pela abolição do tráfico de escravos, entre 1810 e 1830 missionários que dedicavam-se à catequização de escravos condenavam a escravidão. Em 1831 uma grande rebelião de escravos na Jamaica era liderada por um diácono da Igreja Batista, o escravo Samuel Sharp, levou mais de 20 mil escravos às armas e só foi totalmente controlada depois do governo colonial prometer a abolição. Finalmente, em 1833 a lei que aboliu a escravidão no Império Inglês foi aprovada e efetivada em 1834, com a condição de que os libertos serviriam por um período de “aprendizado” por mais 6 anos, esta cláusula foi modificada e a liberdade total foi intorduzida em 1838.
Na raiz da diferença entre Barbados e Brasil, não encontramos somente a data em que a escravidão foi abolida mas o que aconteceu imediatamente depois disso. Sabemos que no Brasil a demanda por mão-de-obra- celebrou um casamento de conveniências com a ideologia do branqueamento, levando o país a importar um número massivo de trabalhadores europeus que tinham como missão “limpar o país da mácula da escravidão”, ao mesmo tempo o movimento abolicionista se retirava da paisagem política brasileira, depois de pálida e curta aparição. Considerando cumprida a sua missão, deixava os negros, agora “livres do jugo do cativeiro” seguirem seu própio destino. Nas ilhas caribenhas, o movimento abolicionista não se desfez após a emancipação, criando sociedades, em geral ligadas à Igreja ou como formas de caridade, que se dedicavam a dar educação ao ex-escravo.
Agora vejamos, no Brasil, o número de negros e mulatos livres no período da abolição é relativamente muito maior do que o número de libertos no Caribe no mesmo contexto; além disso, o Brasil dispunha de terras públicas ou livres, o que não existia nas ilhas onde cada hectare tinha um proprietário muito zelozo de seus direitos. Claro, temos que considerar a Lei de Terras de 1850, que limitou o acesso à propriedade, mas ainda assim, era possível a ocupação de terras devolutas, que de fato ocorreu em uma certa extensão. Quer dizer, no geral as condições para se criar uma classe média que incluísse uma maioria de negros e mestiços nas primeiras décadas depois da abolição existiam de forma muito mais favorável no Brasil do que numa ilha como Barbados, que ainda continuava sob a condição de colônia.
Mas a ausência dos estímulos à educação pública e de programas especiais para a educação dos negros, aliada à concorrência racial dos imigrantes, que pelo simples fato de serem negros encontraram maior simpatia de empregadores, banqueiros, e clientes, favoreceu a proliferação de uma classe média descendente de europeus em menos de duas décadas após o grande movimento de imigração. Essa classe de descendentes de imigrantes, à qual se somaram os libaneses e japoneses, conseguiu investir na educação, que para os negros, relegados a trabalhos de pagamento inferior e de longas jornadas de trabalho, tornou-se um sonho muito mais difícil de conquistar.
O resultado se vê nas imagens da política brasileira: descendentes de imigrantes despontam como governantes, políticos e grandes empresários, enquanto que os negros continuam a lutar pelo direito à educação – na forma de cotas ou ação afirmativa, por direitos trabalhistas – que ainda são limitados às empregadas domésticas, por exemplo e pelo direito à legitimidade, de poder andar pelas ruas à noite sem serem confundidos com criminosos.
Também se vê nas imagens da política em Barbados: desde 1966, quando conquistou a independência, todos os primeiro-ministros de Barbados têm sido negros, assim como todos os outros ministros com poucas exceções, apesar de uma minoria de brancos que ainda detém parte do poder econômico. Ninguém sequer nota o fato de um negro ser nomeado como presidente do Banco Central ou da Corte Suprema de Barbados, e a educação é livre e gratuíta, dos três anos de idade até o doutorado para os cidadãos barbadenses, independentemente de sua idade.
Apesar da religião cristã protestante ser dominante, na ilha convivem grupos minoritários que praticam outras religiões: muçulmanos, indianos, católicos, rastafarians, judeus e budistas. Na única universidade, professores locais se misturam a outros vindos de países africanos, europeus, da Índia, da China, e até esta brasileira que vos escreve.
No Brasil, a ideologia do branqueamento foi vencedora no embate racial, mas isso não resolveu o probelma da desigualdade. Somos hoje um país predominantemente mestiço, no qual a pele mais escura ou o cabelo mais crespo pode determinar a sua posição no mercado de trabalho. A campanha pela emancipação ainda não acabou, temos que abolir o racismo e as diferenças raciais, e a educação continua a ser a resposta. A educação muda um país, a educação liberta o povo.
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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.
2 Comments
Excelente initiativa. Parabems!
Excelente initiativa. Parabems!
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