Mujeres argentinas & gaúchas
Vou contar um lindo episódio que aconteceu um dia, quando a Elis e Mercedes Sosa, finalmente, se conheceram.
Havia entre elas uma admiração incontida. Mas não se conheciam. Elis, que sempre soube de sua grandeza, tinha um comportamento, não diria complicado, mas bastante crítico em relação à qualidade artística das pessoas; jamais rasgaria sedas para Mercedes e fingia não valorizar muito a grandeza da outra. Mas seu olhar não sabia esconder suas verdades. Elis mirou em Mercedes quando decidiu interpretar “Gracias a La Vida”, de Violeta Parra. São as duas maiores interpretações, entre as muitas, que essa canção já teve. A gravação de Elis foi uma clara e personalíssima declaração de amor a Mercedes.
Elis gravou minha música “Romaria”, uma canção que, de certa maneira, “latiniza” um pouco a música caipira. “Importei” muitas coisas da nova canção folck que se estabeleceu na Argentina quando Mercedes decidiu ir além, abrindo mão dos confortos todos em nome da liberdade dos povos, e fez soar os tambores com canções cheias de conteúdo humano. “Romaria” tem, em seu DNA, um pouco do sentimento emocionado que se ouve nas milongas de Athaualpa de Yupanqui, por exemplo.
O disco de Mercedes que abriu os horizontes musicais que norteiam meu trabalho até hoje chama-se “Mulheres Argentinas”. E, assim, começou a escalada; gravei meus primeiros discos.
Durante uma excursão a Ushuaia, na Terra do Fogo, ao sul da Argentina, o compositor Leon Gieco ouviu algumas das minhas músicas. Segundo suas próprias palavras no livro que escreveu sobre essa “gira al sur” , como dizem, ele identificou a influência de Mercedes no meu trabalho e comentou com os músicos de sua banda que os brasileiros estavam usando bem as influências da música de seu País. Foi então que ele decidiu se dedicar à música folk de lá.
Transformou-se num dos grandes compositores de Mercedes, criando canções como “Carito”, em parceria com o correntino Tarragó Ross, um clássico da música portenha.
Leon, me deu a honra de participar do DVD que gravei em 2008. Hoje, ele é um artista muito respeitado e tem uma carreira internacional consagrada.
Comentei com Mercedes, depois de uma emocionada apresentação sua no Palace, sobre essa “conexão musical” entre um autor brasileiro e outro argentino, uma espécie de “circulo virtuoso”, onde um puxa o outro como um oito infinito. Ela quis saber de tudo sobre essa história e fez muitas perguntas, a mim e ao Leon, que participou do show dela naquela noite.
Foi lindo esse encontro.
Depois, em Buenos Aires, numa apresentação de Leon, num concerto em frente ao obelisco da avenida Nove de Julho, Mercedes mandou avisar que nos saudaria com sinais de lanterna da sacada de seu apartamento, onde dava para ver o palco. Num determinado momento do show, a lanterna começou a piscar alucinadamente. Leon, do palco, olhou para mim que estava assistindo da coxia, afastou um pouco o microfone e, sorrindo, disse: “La Negra…”
Quando Mercedes e Elis se cruzaram naquele corredor solitário, era a primeira vez que se viam. Abraçaram-se demoradamente e, emocionadas, soluçaram juntas; duas das mais belas vozes humanas soluçando juntas.
É isso aí…
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Texto publicado originalmente na edição 572 do Jornal Contato