Medicina Caipira
De Caipirarum Rebus Medicis*
Texto de Gentil de Camargo
A ação curativa ou sedativa do calor é meio a que se recorre vulgarmente nesta região como, aliás, acredito que fazem em toda a parte.
Ao doente, examinam-lhe amiúde os pés para verificar se estão frios e, neste caso, achegar-lhes, sob a coberta uma botija de água quente enrolada numa beata.
Quando acontece uma dor surgir em lugar determinado, aplicar-se-á aí um saquinho de milho. Aquecidos os grãos, despejam-nos no saquinho que, mal cheio, torna-se flexível e pode, assim aderir a parte doente.
Usança antiga essa, pois, lê-se este emprego na “Vista Patris Stanislai de Campo/ e societate de Jesu/ in Brasiliensis Proviciae Sacerdos”, biografia do sacerdote paulista,escrita em 1765.
Diz o livro citado: “Trazia sempre um saquinho cheio de grãos de milho que sempre tinha a mão para aplicar nas espécies de doenças repentinas; e como estes grãos, recebido o calor, o conservam por muito tempo, com eles aquecia a parte afetada, até que, dissipada a constirpação, desaparece a dor de que ela era causa”.
O valor terapêutico do fumo, valor que lhe emprestam pessoas antigas e os caipiras da roça, corre parelhas com as virtudes curativas da pinga. Constitui longo e palpitante capítulo do folclore e que não foi esgotado ainda.
Para ilustrar, lembrem-se algumas das aplicações:
1- umidecido com saliva ou pinga, sobre a ferroada de vespa ou de qualquer animal venenoso.
2- A “nascida” é banhada com água do cozimento de folhas de fumo, a qual, depois, se põe sobre esse tumor.
3- A picadura de cobra é sugada por alguém com a boca onde pôs lascas de fumo.
4- Para extirpar berne, coloca-se sobre o orifício de sua entrada sarro de pito.
5- Esfrega-se lasca de fumo nos dentes para clareá-los(!). Esta prática dita “arear os dentes” é principalmente das mulheres. Até o primeiro quartel do século (XX), nas reuniões femininas, isto é, durante as visitas, era apresentado um pires, ou prato com lascas de fumo e, como é óbvio, uma escarradeira…
6- Para tirar poder a um feiticeiro, é surrá-lo com uma corda de fumo, dando-lhe, pelas costas, nos ombros e em cruz, isto é, ora num ora noutro.
7- pinga quente com cânfora e fumo serve para banhar uma parte dolorida, “nascida”, estrepe ou bicho (pulex penetrans) arruinados, cânfora pode ser substituída por sal.
8- Extraído o bicho-de-pé, obtura-se o orifício com pó de fumo.
Esta última medicina também é citada no livrinho:”Quaedam in Brasilia, magnitudine tamen non nihil minora.
Haec, humana cute ac pedum maxime terebrata, inter cutem sibi locu effeiciunt, brevique ad molem excrescunt sinapis grano fera, sequalem nigro, colore, quem ante habuerant, in albo mulato.
Dolor terebrata, fere nullus, at pruritus quidam utcumque molestus. Jam vero insecta, vel injustam molem excreverint, vel sint recenter ingressa facili eruuntur negotio. Relictum in cute foramen brevi obducitur, nullo adhibito medicamento; etsi cautiores illud nicosiaco pulvere obutrare soleant“. (cap.17, Stanislai obitus).
Diz o texto: “No Brasil, criam-se insetos semelhantes às pulgas, mas em tamanhos menores.
Estes, perfurada a cútis humana, principalmente dos pés, alojam-se sob a epiderme; em breve crescem quase como um grão de mostarda, com igual cor negra, depois mudada em branco.
A dor da pele perfurada é quase nenhuma mas é muito molesto o prurido.
Os insetos ou tenham já crescido muito ou recentemente entrado, extraem-se facilmente.
Fecha-se sem demora e sem remédio algum o buraco que fica na pele. As pessoas mais cautelosas, entretanto, costumam obturá-lo com pó de tabaco.”
Do trecho que acabamos de transcrever, interessa a afirmação do último período; não deixam, porém de ser curiosas a descrição do bicho-de-pé (pulex penetrans) e a narração do mal que causa, pela realidade e clareza do autor, aliás desconhecido, servindo-se de um latim sofrível.
Se bem que folclore não seja apenas tradição, como acertadamente afirma o prof. Rossini Tavares de Lima, parece-nos merecer registro esta medicina do saquinho de milho e do fumo já usada pelo caridoso jesuíta de São Paulo, na era de setecentos e que ainda sobrevive na cultura popular.
P.S.-Pelas citações destas notinhas, vê-se porque surgiu a barbaridade do título.
*Nota da Redação: O título original desse texto, que foi publicado em 1960, por Gentil de Camargo no jornal A Gazeta, é o que se encontra no início desse texto (“De Caipirarum Rebus Medicis”).
Gentil Eugênio de Camargo Leite
1900-1983
Mestre de latim, Português, história da civilização, francês e sociologia. Lecionou em Taubaté e Catanduva, a várias gerações, cuja inteligência e personalidade aprimorou. No magistério prestou serviços como diretor e inspetor de ensino.
Laureado jornalista, folclorista e pesquisador das nossas histórias e tradições, usos e costumes, foi um dos fundadores da “Sociedade de História e Folclore de Taubaté”, também ingressando em diversas instituições folclóricas do Brasil. Firmou também parceria com o músico taubateano Fêgo Camargo compondo várias obras ainda hoje conhecidas. Seu nome é citado em importantes dicionários de autores nacionais.
Admirado por Monteiro Lobato, em discurso proferido no Rotary Club de Taubaté, em 15/09/52, sobre o cinqüentenário dos Sertões, apresentou a idéia de instituir a “Semana Monteiro Lobato”.
A obra de Gentil de Camargo, esparsa em jornais e revistas foi reunida pela primeira vez no livro “Poesia e Prosa”.
(Fonte: Taubaté: de Núcleo irradiador de bandeirismo a centro industrial e universitário do Vale do Paraíba, de Maria Morgado de Abreu)
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Feliz dia do Folclore!
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