“Meu consolo é saber que vou morrer”
Monteiro Lobato pede a Cesídio Ambrogi mais informações sobre a Biblioteca Sítio e é taxativo sobre a participação do “Poder Público” na empreitada: ” O Poder Público não colaborará, porque o Poder Público em nossa terra é a própria Sujeira Organizada”, afirma o escritor.
(Optamos por manter a grafia original da carta)
S. Paulo, 20/12/1943
Cesídio:
Respondo á ultima – de 51 Ciente de tudo. Eu tinha vontade de ver o projeto e discuti-lo com vocês, e chegaria até aí para isso, se vocês no tempo próprio me convidassem. Estou certo duma coisa: o que vai sair é o projeto do Urbano. O Poder Público não colaborará, porque o Poder Público em nossa terra é a própria Sujeira Organizada. Quando eu ouço essa expressão “Poder Público” sinto vontade de vomitar. Para meu estômago tem mais força que a velha poaia.
Meu interesse no assunto, como já te disse, é enorme. Não como homenagem á minha pessoa, porque isso de homenagem é besteira, mas como realização duma verdadeira novidade em benefício das crianças. Hoje dizem que a criança é tudo, falam em S. M. a criança – mas falam só. A não ser na Rússia e nos Estados Unidos, a criança não passa dum tema para belas dissertações em salas de conferências elegantes. E entre nós ninguém quer saber das crianças, ou então tomam-nas como “material político”. O governo confirma-as no sentido político do momento – isto é, ajeitam-nas como tijolos consolidadores da igrejinha dominante. Os padres católicos preparam-nas como cimento perpetuador da insigne patifaria chamada Igreja Católica – uma coisa que os carcamanos inventaram e tem o escritório central em Roma. Mas quem pensa no livre desenvolvimento da personalidade humana na criança? Livre, livre? Todas as facções dominantes querem-nas como futuros elementos políticos das respetivas políticas.
A nossa Ordem Social é uma coisa tão suja e sórdida que o meu consolo hoje é um só: saber que vou morrer e afastar-me ab aeternitate da sujeira. Quando meus filhos morreram senti uma grande satisfação íntima que nem aqui em casa compreenderam. É que os vi livres da Sordície Reinante. E invejo-os, e anseio para que também me chegue a hora de espapar ao imenso campo de concentração da Estupidez Dominante, aqui e em toda parte. Mas mesmo quem chega a esta infinita descrença no Homo, não pode furtar-se ao prazer do sonho – á ilusão do Quem Sabe? E o surto dum Sítio aí, como vocês imaginam, com possibilidade de reprodução em outros pontos desta terra, me põe um pouco de luz cor de rosa ou azul na alma. Mas depois vem a advertência da realidade. Fazemos os Sítios e logo a Sordidez enche-os de coisas políticas – livros sobre a vida dos ditadores, sobre o papa, sobre o Deus que eles inventaram e manipulam – e adeus beleza do nosso Sítio! Não há o que os infames não desnaturem – e eles sabem perfeitamente que a criança de hoje pode ser transformada no tijolo de que eles necessitam amanhã…
Adeus. Quando houver novidade, avise-me.
Lobato.