A urna mágica
A nossa República é relativamente jovem, conta 123 anos e uma quantidade enorme de modelos políticos. Seus primeiros anos foram de governo provisório, seguido de um governo civil oligárquico, que foi sucedido pela era Vargas e seu governo populista, substituído pela Ditadura Militar e, atualmente, a Nova República. Temos, portanto, uma história das Repúblicas brasileiras.
Nesse longo período, à exceção do regime militar, o voto popular foi um confirmador dos poderes. É por meio do voto que se testa a popularidade do político. Vitor Nunes Leal, autor do conceituado “Coronelismo, enxada e voto”, afirmou que o prestígio político durante a República Velha era medido por meio da quantidade de votos que era capaz de conquistar (não importava como, o importante era o número). Hoje isso também vale, mas existem outros espaços de ação que também agregam prestígio ao político, mas isso fica para outro artigo.
As eleições, desde a nossa primeira República, limita de alguma forma a autonomia do eleitor. Naqueles anos, o voto era censitário, restrito, portanto. Enquanto vereadores eram eleitos com pouco mais de cem votos, os deputados precisavam de pouco mais que mil. Os votos eram marcados, rigorosamente contralados. Sabia-se quem votava em quem. Foi nesse período que surgiu o termo “curral eleitoral”, em referência ao voto de cabresto.
A quantidade de eleitores, mesmo com o rigoroso controle feito pelos postulantes à cargos públicos, era sempre uma incerteza. As eleições da República Velha poderiam servir de cenário para os melhores filmes de zumbis que são tão comuns nos blockbusters que tanto assistimos. A quantidade de gente morta que votava muitas vezes superava a de eleitores vivos. Os mortos se concentravam principalmente nas zonas rurais. Cédulas falsas eram comuns e existiam na quantidade proporcional à capacidade de influência dos candidatos. A paródia d’O Taubateano é exemplo:
Porque nenhum eleitor
Tivesse comparecido,
Foi a eleição um fervor,
Foi um combate renhido.
Só se via gente, gente,
Correndo e muito cançada
A fazer um tempo quente
Por causa da eleiçãozada.
Até dizem que um nada
Foi o que valeu o tal
Pois com 100 da eleitorada
Fizeram 1000! Não faz mal. (O Taubateano, 22/04/1900, p.1)
No primeiro decênio do século 20, em Taubaté, as disputas políticas estavam em ebulição. As fraudes feitas pelo partido do governo estavam em pé de igualdade às do partido de oposição. Os membros dos dois partidos tinham igual prestígio na cidade. A oposição, no entanto, era um pouco mais rica, contava como líderes com o poderoso Visconde do Tremembé, os irmãos Câmara Leal e a família Costa.
Em 1903, durante as eleições, a oposição foi pega de surpresa. Naquele ano seria escolhido o Presidente do Estado (ainda não era chamado de Governador), cujos candidatos, para se firmarem no poder, dependiam das associações com os poderosos locais. Na política estadual a disputa era muito parecida com a municipal, mas com chances de um pouco menos de violência. Era o partido do governo contra o partido de oposição.
Os governistas de então, na mesa eleitoral do Bairro dos Remédios, desconfiaram que ali os votos já estavam todos decididos. Um deles resolveu conferir a urna. Levantando-a, percebeu que o peso era desproporcional à quantidade de votos que seriam ali depositados. Imediatamente tratou de fugir com a urna para comprovar a fraude. Já na estrada, sendo seguido pelos fraudadores, abriu a urna e a atirou no rio, comprovando que a quantidade de votos ali depositados era exagerada.
O episódio alimentou a imprensa taubateana por semanas, tornando-se motivo de chacota por meio dos pasquins e os jornais governistas. O Caixeiro, jornal humorístico feito pelos membros da Associação dos Empregados do Comércio de Taubaté, foi o que mais noticiou o evento.
Pois compadre, tenho labutado estes dias
e não cahe um peixe no anzol.
– O que mercê tem posto n’elle?
– As iscas de costume…
– Ah! É por isso, os peixes deste rio estão cevados a… cédulas…
(O Caixeiro, 06/12/1903, p.1)
Nas eleições seguintes, o nível de violência cresceu, mas não era evento exclusivo do dia das eleições. Atentados, empastelamentos de jornais, abuso de poder e manobras políticas eram as armas para inibir o surgimento de políticos fora do eixo de interesse dos poderosos locais.
Ah! O Jorge Tibiriça venceu as eleições de 1903.
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Angelo Rubim é historiador, produtor do Almanaque Urupês.