Uma pequena antologia poética de Cesídio Ambrogi
POEMA DO PASTOREIO
Nasci pastor. Aos vinte anos,
por verdes campos risonhos,
andei tangendo ilusões…
-meu rebanho era de sonhos.
Agora, além dos sessenta,
ao peso dos próprios anos,
pastoreio outro rebanho…
-hoje, só de desenganos.
E no meu velho cajado,
que é o mesmo da mocidade,
ainda me apoio a sonhar…
-mas chorando de saudade.
1963
***
MINHA TERRA
Meu vilarejo – um cromo estilizado:
O Largo da Matriz. Uma palmeira.
A cadeia sem preso nem soldado.
Calma em tudo. Silencio. Pasmaceira.
Andorinhas em bando, no ar lavado.
O rio. O campo ale de uma porteira.
Um velho casarão acaçapado
-Nossa casa tranqüila e hospitaleira.
O cruzeiro lá em cima, em plena serra,
Braços abertos para minha terra…
E eu criança e feliz. Que doce idade!
Hoje, porém, meu Deus, quanta emoção!
Do meu peito no triste mangueirão,
Cavo e soturno, o aboio da saudade…
In “São Paulo dos Meus Amores” – Afonso Schmidt – Ed. Brasiliense – São Paulo
***
JECA, O FILÓSOFO
Amiúdam galos. E, de manso, a terra
Desperta. Ruflam asas. Sopra a aragem.
E o sol, que surge por de trás da serra,
Aloira toda a matinal paisagem.
Um cão ladra distante. Longe berra,
Transmalhada, uma cabra na pastagem;
De uma choça a janela se descerra,
A emodulrar do Jeca a triste imagem.
Deslumbrado, entusiasmado da natura,
Exclama ante a paisagem que fulgura.
-“Sim sinhô. Ta fermoso de encanta!”
E, em seguida, tomando a “troxada”:
-“Cum dia ansim só mermo uma caçada…
Inté é pecado a gente trabaiá!”
“AS MORENINHAS” – pág. 86
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INDISCREÇÃO
Lusco-fusco. Madrugada.
A noite finda-não-finda.
Por tudo, a paz sossegada;
Em tudo, silencio ainda.
De repente, a longa estrada,
Ao meu olhar se deslinda,
E, a um beijo de luz dourada,
A terra toda se alinda.
Ante o sol, noivo risonho,
A manhã, cheia de sonho,
Cora e, indecisa, sorri.
Enquanto alguém, neste instante,
Grita, pilhando-a em flagrante:
-“Vi! Bem-te-vi! Bem-te-vi!”
(Publicado em “O Momento” – 31/1/43 – com o pseudônimo C.)
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E LÁ VAI O TREM…
Lá vai o “Trem da Nação”:
– “Kubicheque-kubicheque…”
Lá vai ele, vai rolando,
Sem nenhum freio nem brequ.
Lá vai ele: – “Piú! Piú!
Kubicheque-kubicheque…”
Que beleza! Como corre!
– “Sacacheque-emitecheque…”
Corre, corre… Vai cheiinho
E rolando direitinho…
Ninguém nele já mais cabe.
Mas, eis pergunta alguém:
-“Para onde irá esse trem?”
-“Não se chabe, não se chabe…”
1960
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PROMETEU SUBURBANO
Tenho uma vontade grande
de sair pelo mundo sem destino
de ir-me à-toa,
como uma folha morta
ao capricho de todos os tempos,
ao acaso de todos os caminhos.
Tenho um desejo imenso
de me largar pelo mundo
-navio sem leme nem bússola,
na delícia de um de-déu-em-déu
ao deus-dará.
Deus, porem, me fez trapo
– trapo humano, já se vê –
e me cingiu a inércia do trabalho
preso a lama da terra.
Mas Ele é bom. E deixa
que minha cabeça viva entre as estrelas…
(de “Poemas Vermelhos”)
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O “PROFESSOR CORVO-LOUCO”
Preto retinto. Esguio. Amável e sorridente. Colarinho alto. Gravata preta. Fraque e cartola. Flor a lapela. Um livro de baixo do braço. Contemporâneo do Frontin e precursor de Chamberlain – com o indefectível guarda-chuva. Sempre azafamado.
Eis aí, em dois traços, todo o perfil desse modestíssimo cidadão Antonio de Souza – por alcunha, “professor Corvo-Louco”.
Poucos, talvez, ainda se recordem dele. Raros, por certo, lhe cultuarão a memória, reconhecendo-lhe os méritos de educador, que lhe assinalavam a personalidade do legitimo pioneiro do magistério particular em Taubaté.
Trabalhador infatigável, fazendo da bondade um verdadeiro apostolado, ele parecia sentir-se feliz sempre que conseguia enfiar na cabeça do analfabeto – quase sempre um adulto -, pacientemente, como luminosas pontas-de-lança, as “primeiras letras” e as “quatro operações” fundamentais.
Com seus minguados recursos intelectuais, que não iam muito alem do “ABC” e dos rudimentos aritméticos, quase analfabeto ele próprio, ainda assim Antonio de Souza, e é preciso que se lhe faça justiça, conseguiu prestar relevantes e inestimáveis serviços à sociedade taubateana.
Dezenas de pessoas, inclusive elementos de preponderante destaque no comércio e nas industrias da cidade, lendo esta croniqueta, estamos certos, se lembrarão com certa emoção do professor modestíssimo que lhes servira de primeiro guia, ensinando-os a ler e a contar.
Nesta hora de festas para Taubaté, quando comemoramos o centenário de sua elevação a categoria de cidade – que esta nossa pagina seja uma homenagem simples, mas comovedora e piedosa, à memória de Antonio de Souza – o “professor Corvo Loco”.
Humilde, quase miserável, sem placa que lhe imortalize o nome, mas sempre sereno e alheio à zombaria covarde de todos os zoilos, – ainda hoje ele é bem o símbolo de todos esses nossos pequeninos anônimos conterrâneos que, sem ruído nem estardalhaço, mas na diuturnidade do seu trabalho honrado, muito fizeram e fazem pela grandeza desta terra que lhes servira de berço, e pelo bom nome de nossa gente.
Estamos certos de que os poderes competentes, neste mês do centenário da cidade, perpetuassem o nome do cidadão Antonio de Souza numa das placas de nossas ruas, – onde tantos gralhos se encontram imortalizados, a alma agradecida do povo taubateano, que, na verdade, se revestiria tal gesto.
Não seremos ouvidos, certamente. Mas, mesmo assim, aqui fica a sugestão. Os homens dificilmente poderão compreender o quanto havia de nobre e de puro idealismo na alma iluminada de um paria, de um simples e anônimo “professor Corvo-Louco”…
(Crônica publicada em “O Momento” – 5/2/1942 – com o pseudônimo C, na seção “Taubaté-Social”)
[box style=’info’] Cesídio Ambrogi (1893-1974)
Nasceu em Natividade da Serra-S.P. Em 1904 muda-se com a família para Taubaté. Jornalista militante, colaborou, por meio século, em periódicos de São Paulo. Tomou parte ativa na vida artística e literária valeparaibana.
Em 1923 tem seu livro de “As Moreninhas” editado pela Monteiro Lobato Editores. A partir daí nasce uma amizade que, em parte, é registrada nas dezenas de cartas, ainda inéditas, que Lobato enviou ao escritor.
Em 1947 lança o livro “Poemas Vermelhos” prefaciado por Monteiro Lobato. A obra tem grande repercussão na crítica literária da época.
Fez parte do grupo de intelectuais que instituíram a “Semana Monteiro Lobato”.
Permeada pela poesia e pelo amor as tradições populares, a obra de Cesídio Ambrogi apresenta o dom poético e a arte de versejar que o fizeram um dos mais importantes poetas paulistas. [/box]
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6 Comments
Ângelo Rubin. Fiquei durante muito tempo procurando "Minha Terra", esse soneto sem verbos de autoria do meu querido professor Cesídio, que o fez em homenagem a sua terra natal, Natividade the Serra. Só fui encontrá-lo novamente há alguns anos, no Google. Ele fez também um outro, de uma só sílaba: Deus vê que meus ais não são mais que dor por ti ó flor. São duas raridades the língua portuguesa.
É impressionante o que o mestre Cesídio fazia com um pedaço de papel e algo para escrever. O domínio sobre as palavras, que saem da pena como brincadeira, leve e densa ao mesmo tempo. Poucos foram os que conseguiram usar com tanta liberdade as palavras. Quer exemplo maior que um soneto sem verbo e um com palavras de uma só sílaba.
Que essa memória não se apague.
Tive o privilégio de ser uma humilde aluna desse ser carismático, no Estadão.
Carismático sim, Maria Helena Rocha Florio. Eu também me orgulho de ter sido aluno do nosso querido Cesídio, em quase todos os anos em que estudei no Estadão.
Só não fui aluno dele em um ou dois anos. Em todos os demais, tanto no ginásio como no colegio (científico), só deu Cesídio. E mesmo quando não era ele o mestre, eu tive o também maravilhoso Professor Gerônimo de Souza. Só me resta agradecer a eles.
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