Pontes, rios, mergulhos e robalos
Texto de Renato Teixeira*
Uma região absolutamente improvável é aquela que fica entre o salto do mergulhador e as águas profundas onde ele encontrará maciez necessária para não ter os ossos moídos quando penetrar no mundo líquido.
Já mergulhei algumas vezez, em Ubatuba, na segunda ponte velha, indo para o Perequê Açu, antes que fizessem aquela coisa feia que existe hoje sobre o Rio Grande. Mergulhava-se em três estágios. O primeiro “trampolim” era o mais baixo e ficava na sapata de concreto que sustentava a ponte. Mais perigoso do que o mergulho em si, era o acesso ao ponto de onde nos lançávamos. Dali eu mergulhei muito.
Havia um estágio superior que ficava no leito carroçável da ponte, por onde passavam os veículos. O passar dos carros nas velhas pontes de madeira provocava um som de reco-reco tocado com baquetas de borrachas, que até hoje trago guardado entre as minhas mais queridas memórias auditivas. Para se atirar dali, era necessário cruzarmos por cima do parapeito da ponte até uma pequena ponta de madeira, exatamente sobre o local onde o rio tinha maior profundidade. Daí, devo ter saltado pouquíssimas vezes porque não sou um cara muito corajoso para esse tipo de aventura.
O mergulho mais arriscado e o mais espetacular era aquele que se praticava do alto dos apoios laterais da ponte e que se erguia mais ou menos a uns dez metros. Daí, só os mais ousados.
Meu tio Waldemar, por exemplo. Era um atleta esse meu tio. Quando minha prima Alba, no início dos anos 1940 foi dar aulas em Maranduba, Waldemar acordava de madrugada, comprava pão na padaria do Maciel e ia correndo levar o pão fresquinho para a Alba. Tomava café com a sobrinha e, correndo, voltava à cidade para cuidar do dia. Era um maratonista por natureza. Waldemar dava saltos maravilhosos lá de cima da segunda ponte. Eu me enchia de orgulho.
Por sinal, era naquela segunda ponte que meu avô Jango Teixeira, pai de Waldemar, ia pescar robalo. Durante toda sua vida, era lá que ele fisgava os robalões, como nós as crianças da família, chamávamos a pesca do nosso avô, o velho e inesquecível Jango.
Certa vez, já passando dos 70 anos, Jango foi desafiado por minha avó Paula quando lançou dúvidas se ele ainda era capaz de fisgar um robalão. Ele não disse nada; foi até o quintal, pegou a fisga e as tralhas e, em menos de duas horas, voltou com um belo exemplar de mais ou menos uns três, quatro quilos. Paula, ao vê-lo chegar com o pescado, disse que aquele exemplar era fichinha perto dos de antigamente que chegavam a pesar dez, quinze quilos.
Jango deu meia volta e retornou à ponte. Uma equipe de reportagem da folha de São Paulo, passando, viu meu avô com a fisga na mão, olhando fixamente para as águas verdes escuras do rio. Os repórteres pararam e quiseram saber que tipo de pesca era aquela. Meu avô explicou que a técnica se resumia em esperar o peixe voltar da desova e quando passasse por baixo da ponte em direção à barra, era só lançar a fisga com precisão e depois dar uma canseira no bicho até que ele ficasse pronto para ser retirado da água.
Naquele exato momento, uma enorme sombra submersa trouxe escaria. Um lançamento preciso e lá na ponta dos dentes da assustadora fisga tridente, um enorme robalo se debatia. Tudo fotografado e assistido pelos jornalistas. Aquele foi o maior robalo de todos e devia pesar uns vinte, trinta quilos.
Jango voltou para casa cheio de si. Naquele dia, não se falou de outra coisa. Pudera, quase chegando aos oitenta anos, meu avô pescara o maior robalão da sua vida. Acontece que no dia seguinte o assunto repercutiu com muito mais empolgação na cidade toda. Meu avô estava na primeira página da Folha em uma linda sequência fotográfica de toda a pescaria.
A primeira ponte que existe até hoje e que dá acesso à praça tem o nome de meu outro avô, Theodorico de Oliveira, por ter sido ele o cara que criou ali a primeira fábrica de gelo em Ubatuba. A ponte ainda está lá dando acesso ao mercado de peixe e ao atracadouro daqueles barquinhos maravilhosos que todos os dias pela manhã seguem pro alto mar, batucando seus tambores a diesel e que fazem parte da minha história principal que é a de estar vivo e trabalhando.
Pontes, rios, barquinhos e a arte de estar flutuando como um mergulhador, depois de nascer e antes de morrer.
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Publicado originalmente na edição 595 do Jornal Contato