Noturno para Barra Mansa
O amor é um trem bão!
Fui convocado para servir a pátria em Caçapava no ano da graça de 1965.
Um ano apenas depois do primeiro de abril de 64. Não quero entrar no mérito da questão sobre a situação política do País naquele instante porque esse problema pertence única e exclusivamente à minha geração. Ficávamos lá no quartel e entrávamos de prontidão a todo instante. Aqueles militares formados quando a academia militar ainda ficava em Realengo, Rio de Janeiro, eram, na grande maioria, reacionários, irritadiços, prepotentes e disciplinadores. Insuportáveis!
Mas a vida no quartel, no meio da tropa, vivendo o dia-a-dia da caserna que nunca era desinteressante, mesmo sob a regência de alguns desses militares completamente equivocados, entra definitivamente na vida de todos os que cumpriram o serviço militar. Dormíamos de farda com o capacete e o mosquetão pendurados na cabeceira da cama, muitas e muitas vezes. Tantas que eu desconfio até que aqueles caras estavam brincado de mocinho e bandido e a gente era o ingrediente que viabilizava a brincadeira. Por sinal a infantilização do povo brasileiro, que passa principalmente pelo cinema americano e pelas novelas banais, passa também por aquele período da ditadura militar, com aquelas histórias que comunista comia criancinha e que todos teríamos que dividir nossas casas com os sem teto.
Se eu for contar quantas vezes ficamos de prontidão, prontos para a guerra sob o comando do incrível coronel Hugo de Sá Campelo, com certeza poderia afirmar categoricamente que houve muitos contra golpes não contabilizados. Quem me salvou nessa ocasião, de ter que me tornar escravo dos meus “superiores” como eles mesmos se denominavam, foi o amor.
Eu estava completamente apaixonado por uma moça que morava longe, havia mais de ano. Ir até ela tornou-se um hábito e dois fins de semana por mês lá estava eu na estação esperando o trem de aço que nunca atrasava.
Quando, porém, o serviço militar me convocava os hábitos sofriam um forte abalo. Não era mais dono do meu tempo. Para compensar o confinamento físico na Taiada, mantive minha mente e meu coração sob o aroma irresistível da paixão. Ir até ela para beijá-la, abraçá-la e sentir seu corpo junto ao meu, passou a ser uma missão para lá de militar; decididamente, meu amor pela namorada era infinitamente maior do que meu amor pela pátria, naquele momento.
O golpe militar para mim, lá pelo meio do ano de 1965, já era coisa do passado. E além do mais, não há golpe político nem levante militar que possa dominar um coração apaixonado.
Então, se já não podia ir de trem de aço abraçar o meu amor, eu iria num tal de “noturno” que mais parecia uma fileira de jacás se requebrando por dentro da noite escura. E eu fardado, com o corte de cabelo em dia, autorização do capitão, barba feita, enfim, totalmente regular.
Dentro daquele trem tinha de tudo. De criança chorando a vendedor de doces com cesta de balas e seus berros irritantes que se misturavam ao matraquear das rodas do trem nos trilhos. Bancos de madeira e lugar nenhum para sentar. Muita gente em pé e lá pelas alturas de Lorena entra uma patrulha em busca de soldados desgarrados. Logicamente, foram logo chegando pro meu lado com aquele ar de caçadores de vacilos. Se deram mal porque um coração inebriado de sublimes sentimentos pode cometer todos os tipos de vacilos, menos sair sem documentos numa noite escura dentro de um trem com ares de trem fantasma.
Olharam até a sola do meu sapato para ver se não estava faltando algum prego. Passei com méritos na avaliação. Perguntaram para onde estava indo e eu lhes disse que estava indo visitar o meu amor. Recomendaram cuidados e que não esquecesse que, mesmo a passeio, eu era antes de mais nada um servidor da pátria com a missão de entregar às autoridades qualquer comunistazinho de merda que me aparecesse pela frente.
Quando cheguei ao meu destino e desci daquele trem senti a doce sensação dos apaixonados voltando ao peito. Era madrugada e uma enorme lua no céu clareava as ruas da cidade vazia. Caminhei uma quadra e me hospedei no Hotel Estação.
Acordei ansioso e ainda meio quebrado pelo balanço do trem, vesti minha farda e fui direto encontrar aquela que dentro do meu peito foi muito, mas muito mais importante do que a revolução de 1964.
Renato Teixeira
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Publicado originalmente na edição 587 do Jornal Contato