Fazer História está distante de ser algo isento de interesses e de conceitos particulares. A cada dia, historiadores e pesquisadores sociais são cobrados a manter distância do seu objeto de estudo para minimizar os juízos de valor, a tomada de partido e os idealismos.
Sou um neófito nesse ofício. O faço há poucos anos, sempre com muito medo de cometer deslizes, mas ao mesmo tempo com o fascínio da descoberta a cada texto, imagem ou depoimento que coleto. Fascínio, sim, um sentimento, à quem deveria ser isento. Ao contrário das exigências, não consigo me afastar disso que é, aos olhos do rigoroso mundo acadêmico, um grandessíssimo defeito. Vão negar?
Nesse mundo erudito, sistematizado e organizado por meio de categorias (ciências humanas, biológicas, exatas e todas as suas subdivisões), um pesquisador da história dizer que tem e analisa sentimentos é uma agressão, pois ele é um cientista social. No seu laboratório com cheiro de papel velho, faz experimentações, confronta ideias, mistura tudo e submete sua tese aos fatos históricos, ou o contrário. O cientista é um robô, não sente nada… ou não deveria.
A história passa sucessivamente por reinterpretações. Quando se pensa que algum assunto está esgotado, lá vem alguém com novas descobertas, com novas ideias. O historiador está organicamente ligado aos novos sujeitos históricos. As novas análises acontecem de acordo com as necessidades em relacionar passado e futuro. Há, sim, uma frenética tentativa em determinar o futuro. O historiador não supõe, não prevê, não sugere. No entanto, é comum que façam uso do seu trabalho para “não repetir os erros do passado”. Quem nunca disse isso?
Consta que ao historiador cabe a análise de eventos sociais, coletivos. O sentimento é coisa da psicologia. Soa como uma heresia, aos mais “ortodoxos”, uma relação entre a história e uma documentação não institucional, como a literatura. Por muito tempo, a política e a economia foram a ossatura do historiador, como disse Jacques Le Goff, um dos pilares da chamada Escola dos Annales. A partir de suas obras fica claro que há a necessidade de uma compreensão empática com as formas de pensamento e comportamentos da humanidade. Com ele a História passou a se preocupar mais com imaginário, a construção do saber e (chorem historiadores ortodoxos) os sentimentos. Sim! Os sentimentos! Uma das obras mais significativas desse autor leva o sugestivo título “Por AMOR às cidades”. Outro historiador da mesma escola, que me desperta especial admiração – apesar de não tê-lo estudado adequadamente-, é Georges Duby, que também aborda o sentimento em sua obra “AMOR e Sexualidade no Ocidente”… ah… o amor!…
Estamos falando aqui em uma História Cultural, matéria que causa calafrios nos desavisados. Criou-se um arcabouço de conceitos e verbetes impronunciáveis a partir da tentativa de “eruditizar” o que Carlo Ginzburg chama de “cultura das classes subalternas” e às vezes “cultura popular”. Criou-se, no ecossistema acadêmico, categorias de analistas que são (ou eram há pouco tempo) menos privilegiadas. Em uma analogia bastante sem vergonha, o historiador cultural está enquadrado no que os mais antigos chamavam de “camadas inferiores dos povos civilizados”. Os “civilizados”, nessa metáfora, são os que acham que a ossatura do historiador está na política e na economia.
A nossa concepção aristocrática de cultura nos leva a classificar: “precisamos valorizar o nosso folclore, as tradições populares”. Isso pegou e não vai mudar. O folclórico é estranho, pois é algo pré-industrial, logo, visto como “cultura primitiva”… reconhece-se portanto, ser cultura. O historiador cultural idem. Preconceito, desconhecimento, chame como quiser.
O fato é que esses historiadores são os que apresentam grande parte dos problemas da história. Em questões estruturais, como diriam os marxistas, ou estamentais, para os weberianos, em que momento o subalterno subverte sua posição? Esse questionamento foi tardio aos historiadores tradicionais. O grupo de minoria chegou na frente. Subverteu-se a análise histórica? Não! Claro que não. Apenas aumentaram o acervo de questionamentos do historiador.
“O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg é, possivelmente, a obra mais lembrada quando se fala em história das minorias. O rei/imperador/presidente deixou, definitivamente, de ser o centro das atenções. Ginzburg reconstruiu a vida de um homem comum, chamado Domenico Scandella (conhecido por Menocchio), que afirmava que o mundo tinha origem na putrefação. O mundo seria uma grande massa formada a partir do fogo, terra, ar e água misturados, “do mesmo modo como o queijo é feito de leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos”. A inquisição foi implacável, o perseguiu o quanto pôde.
Ginzburg, desenvolveu uma História diferente, mas que se aproximava do que diziam os Annales. Em muitas das passagens vê-se referências às terminologias da escola francesa. “Imaginário”, “crença”, “costumes”, “tradição”: termos trabalhados à exaustão por Duby e Le Goff (alguns filósofos de tempos mais remotos também, mas sempre um tanto afastados da história, como David Hume, por exemplo). Uma clara aproximação de ideias, mas Ginzburg está mais para marxista do que outra coisa. Duby era fortemente influenciado por esse pensamento, mas desenvolveu um pensamento livre para se relacionar com outras ideias. É ele um dos protagonistas numa linha historiográfica que tenta por fim ao ortodoxismo da História, sem cair em contradição ou superficialidade.
Abriu-se uma frente de estudos sobre a intimidade do homem, aqui mesmo nesse modesto Almanaque temos exemplares disso: questões sobre higiene, ambientalismo, tempo, tradições, tratadas com especial atenção e interesse científico sem superficialismos.
Vou tratar de algumas dessas questões nessa coluna que se inaugura. Só espero não acanalhar o troço.
E antes que eu me esqueça: o historiador se comove com o que vê. Os que não, são robôs.
Nos próximos textos falo mais sobre cultura, arte, fotografia e Taubaté, obviamente.
Até.
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7 Comments
Belo artigo Angelo. Afinal de contas, como você bem o disse, não somos robôs. A Escola dos Annales nasceu há exatos 84 anos, portanto, já está mais do que na hora de desconstruirmos essa imagem velha e ultrapassada de uma ciência sem intenções e de um historiador despido the ‘vestes’ (das ideias e problemas) de seu tempo.
Parabéns pelo texto Angelo Rubim. Para mim, esta discussão na história cansa. História cultural, social, econômica, enfim… terminologias que são construídas para satisfazerem os egos dos doutores, quase sempre ancorados nesta ou naquela ideologia política de plantão! Gosto de lembrar o que escreveu Marc Bloch: “Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia.” Poesia não é sentimento? Talvez este foi o erro dos historiadores… a História ficou fria demais… deixou-se perder o calor daqueles que são investigados por nossas teorias, nossos métodos, nossas ideias… Deixou-se perder “o cheiro de carne humana”… Talvez, deixamos de ser o Ogro, comentado por Bloch, para nos tornarmos em imbecis intelectualizados… quando deveríamos tornar-se apenas intelectuais. Distância é necessário… mas, a meu ver, é necessário sentir com os personagens, e ás vezes, pelos personagens com os quais trabalhamos… Natalie Zemon Davis é um exemplo disso.
Verdade, Yoseph , “não deixar de ser o Ogro”, até mesmo para fazermos jus à própria definição de história, qual seja “uma ciência DOS HOMENS em sociedade, no tempo”. Se perdermos os homens de vista, e focarmos a sociedade como organismo vivo, nos tornamos sociólogos; se nos esquecermos do tempo, nos tornaremos antropólogos funcionalistas; se mergulharmos somente no homem e seu universo interno, nos tornaremos psicólogos…O historiador tem um objeto claro, que desfila diante de seus olhos num palco muito específico ( o tempo histórico) e que realiza ações, condicionadas pelas diversas relações que estabelece em função the cultura e the sociedade às quais pertence… cada escola teórica elege uma dessas relações como a mais importante… e nós escolhemos a que mais nos encanta – como dizia Bloch.
Querido Angelo – que propósito salutar!”tentar por fim ao ortodoxismo the História, sem cair em contradição ou superficialidade”. Falar, escrever, explanar sobre acontecimentos humanos……. com sentimentos humanos! Precisa melhor?
Que bom que gostou, professora. É um grande incentivo.
Esse mundo muito quadrado que a academia nos apresenta sempre me deixou incomodado. Prega-se a subjetividade à exaustão, mas não fazem a separação disso com o que é ou deixa de ser parcial/imparcial.
Não é possível que façamos História sem emoção. Somos privilegiados por escolhermos o que queremos (qual é a outra ciência que é tão livre?), damos importância àquilo que pensamos ser importante e convencemos, muitas vezes, de que de fato aquilo é importante.
Não vejo motivos para não sairmos desse trilho tradicional da história. Afinal, os Annales já são quase centenários.
Manfredini, é isso mesmo! A história anda muito fria e parecemos sim imbecis intelectualizados.
É algo a ser desfeito. Se estamos lidando com pessoas no tempo, com o tempo histórico, é obvio que estamos lidando com o que movia as pessoas. E o que nos move se não o que sentimos no momento.
Permita o desabafo: negar que podemos fazer uso de outras tecnologias, como a psicologia, a sociologia, antropologia, é andar para trás. A história, aquela da academia, precisa ser mais tolerante, mais flexível. Afinal, a academia produz para a sociedade.
Enquanto não fazemos isso, os Laurentinos da vida vão continuar nadando de braçada. Não acho ruim, pelo contrário, acho excelente que existam Laurentinos por aí (que por sinal fazem textos ótimos), mas sou a favor de que mais historiadores façam o que ele faz, que a História seja mais útil e mais inteligível.
Colocar ideias de linhas diferentes para conversar é uma necessidade (sim, é idealismo), pois teríamos de fato a integração de bons pesquisadores sem aquelas picuínhas que estamos acostumados.
Dona Lia, penso que a História é uma ciência que tem o privilégio da liberdade, uma liberdade que outras ciências talvez não gozem. Somos, de certa forma, capazes de dar significado à um sem número de ações do homem. Não vejo porque não nos colocarmos diante disso.
Na maioria dos casos, pesquisa-se somente aquilo que lhe é interessante, é algo íntimo, que causa comoção no pesquisador. Como afirmar que o cara é isento? Difícil.
Assim como deve ser difícil que exista uma boa pesquisa sem envolvimento do pesquisador.
Certa vez a senhora me disse que era nítido que eu tinha sido picado pelo bichinho da pesquisa, pois com qualquer papel que aparecia eu ficava boquiaberto. É verdade, tudo surpreende, tudo é passível de ser pesquisado e tudo requer envolvimento. Quem não se emociona com suas descobertas é um robô.
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