SOBRE HISTORIADORES E ROBÔS

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                Fazer História está distante de ser algo isento de interesses e de conceitos particulares. A cada dia, historiadores e pesquisadores sociais são cobrados a manter distância do seu objeto de estudo para minimizar os juízos de valor, a tomada de partido e os idealismos.

                Sou um neófito nesse ofício. O faço há poucos anos, sempre com muito medo de cometer deslizes, mas ao mesmo tempo com o fascínio da descoberta a cada texto, imagem ou depoimento que coleto. Fascínio, sim, um sentimento, à quem deveria ser isento. Ao contrário das exigências, não consigo me afastar disso que é, aos olhos do rigoroso mundo acadêmico, um grandessíssimo defeito. Vão negar?

                Nesse mundo erudito, sistematizado e organizado por meio de categorias (ciências humanas, biológicas, exatas e todas as suas subdivisões), um pesquisador da história dizer que tem e analisa sentimentos é uma agressão, pois ele é um cientista social. No seu laboratório com cheiro de papel velho, faz experimentações, confronta ideias, mistura tudo e submete sua tese aos fatos históricos, ou o contrário. O cientista é um robô, não sente nada… ou não deveria.

                A história passa sucessivamente por reinterpretações. Quando se pensa que algum assunto está esgotado, lá vem alguém com novas descobertas, com novas ideias. O historiador está organicamente ligado aos novos sujeitos históricos. As novas análises acontecem de acordo com as necessidades em relacionar passado e futuro. Há, sim, uma frenética tentativa em determinar o futuro. O historiador não supõe, não prevê, não sugere. No entanto, é comum que façam uso do seu trabalho para “não repetir os erros do passado”. Quem nunca disse isso?

Georges Duby
Georges Duby

                Consta que ao historiador cabe a análise de eventos sociais, coletivos. O sentimento é coisa da psicologia. Soa como uma heresia, aos mais “ortodoxos”, uma relação entre a história e uma documentação não institucional, como a literatura. Por muito tempo, a política e a economia foram a ossatura do historiador, como disse Jacques Le Goff, um dos pilares da chamada Escola dos Annales. A partir de suas obras fica claro que há a necessidade de uma compreensão empática com as formas de pensamento e comportamentos da humanidade. Com ele a História passou a se preocupar mais com imaginário, a construção do saber e (chorem historiadores ortodoxos) os sentimentos. Sim! Os sentimentos! Uma das obras mais significativas desse autor leva o sugestivo título “Por AMOR às cidades”. Outro historiador da mesma escola, que me desperta especial admiração – apesar de não tê-lo estudado adequadamente-, é Georges Duby, que também aborda o sentimento em sua obra “AMOR e Sexualidade no Ocidente”… ah… o amor!…

Jacques Le Goff
Jacques Le Goff

                Estamos falando aqui em uma História Cultural, matéria que causa calafrios nos desavisados. Criou-se um arcabouço de conceitos e verbetes impronunciáveis a partir da tentativa de “eruditizar” o que Carlo Ginzburg chama de “cultura das classes subalternas” e às vezes “cultura popular”. Criou-se, no ecossistema acadêmico, categorias de analistas que são (ou eram há pouco tempo) menos privilegiadas. Em uma analogia bastante sem vergonha, o historiador cultural está enquadrado no que os mais antigos chamavam de “camadas inferiores dos povos civilizados”. Os “civilizados”, nessa metáfora, são os que acham que a ossatura do historiador está na política e na economia.

                A nossa concepção aristocrática de cultura nos leva a classificar: “precisamos valorizar o nosso folclore, as tradições populares”. Isso pegou e não vai mudar. O folclórico é estranho, pois é algo pré-industrial, logo, visto como “cultura primitiva”… reconhece-se portanto, ser cultura. O historiador cultural idem. Preconceito, desconhecimento, chame como quiser.

                O fato é que esses historiadores são os que apresentam grande parte dos problemas da história. Em questões estruturais, como diriam os marxistas, ou estamentais, para os weberianos, em que momento o subalterno subverte sua posição? Esse questionamento foi tardio aos historiadores tradicionais. O grupo de minoria chegou na frente. Subverteu-se a análise histórica? Não! Claro que não. Apenas aumentaram o acervo de questionamentos do historiador.

Carlo Ginzburg, historiador italiano. Foto Rodrigo Capote/Folhapress
Carlo Ginzburg, historiador italiano. Foto Rodrigo Capote/Folhapress

                “O queijo e os vermes”, de Carlo Ginzburg é, possivelmente, a obra mais lembrada quando se fala em história das minorias. O rei/imperador/presidente deixou, definitivamente, de ser o centro das atenções. Ginzburg reconstruiu a vida de um homem comum, chamado Domenico Scandella (conhecido por Menocchio), que afirmava que o mundo tinha origem na putrefação. O mundo seria uma grande massa formada a partir do fogo, terra, ar e água misturados, “do mesmo modo como o queijo é feito de leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos”. A inquisição foi implacável, o perseguiu o quanto pôde.

                Ginzburg, desenvolveu uma História diferente, mas que se aproximava do que diziam os Annales. Em muitas das passagens vê-se referências às terminologias da escola francesa. “Imaginário”, “crença”, “costumes”, “tradição”: termos trabalhados à exaustão por Duby e Le Goff (alguns filósofos de tempos mais remotos também, mas sempre um tanto afastados da história, como David Hume, por exemplo). Uma clara aproximação de ideias, mas Ginzburg está mais para marxista do que outra coisa. Duby era fortemente influenciado por esse pensamento, mas desenvolveu um pensamento livre para se relacionar com outras ideias. É ele um dos protagonistas numa linha historiográfica que tenta por fim ao ortodoxismo da História, sem cair em contradição ou superficialidade.

                Abriu-se uma frente de estudos sobre a intimidade do homem, aqui mesmo nesse modesto Almanaque temos exemplares disso: questões sobre higiene, ambientalismo, tempo, tradições, tratadas com especial  atenção e interesse científico sem superficialismos.

                Vou tratar de algumas dessas questões nessa coluna que se inaugura. Só espero não acanalhar o troço.

                E antes que eu me esqueça: o historiador se comove com o que vê. Os que não, são robôs.

                Nos próximos textos falo mais sobre cultura, arte, fotografia e Taubaté, obviamente.

                Até.

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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
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