“A escrita da luz” na memória taubateana

 “A escrita da luz” na memória taubateana

Por Rachel Abdala

“Começar pelas palavras nunca é coisa vã”. De acordo com Alfredo Bosi na obra Dialética da colonização importa pensarmos sobre o significado e os usos dos termos para chegarmos à compreensão dos conceitos. Soma-se a essa justificativa científica o meu gosto particular pela etimologia das palavras.

E de qual palavra estamos aqui falando? Proponho, com esse texto que apresento a vocês, refletir sobre o termo fotografia. Grafia, como sabemos, simplificadamente significa escrita ou escrever. Foto significa luz. Ambos termos de origem do grego. Fotografia foi assim o termo criado para designar a técnica desenvolvida para fixar imagens por meio de exposição luminosa em uma superfície sensível.

Joseph Nicéphore Niépce e Hercule Florence

Oficialmente a primeira fotografia reconhecida remonta ao ano de 1826 e é atribuída ao francês Joseph Nicéphore Niépce. No entanto, o historiador brasileiro Boris Kossoy defende que a técnica foi desenvolvida em primeiro lugar por Hércule Florence no Brasil. A despeito dessa polêmica de autoria, a invenção da fotografia não pode ser considerada como a obra de um só autor, mas como um processo de acúmulo de avanços por parte de muitas pessoas, trabalhando, juntas ou em paralelo, ao longo do tempo, desde o desenvolvimento da chamada câmara obscura durante o Renascimento que criava a imagem de perspectiva. No século XX, paralelamente ao continuo desenvolvimento da técnica a fotografia também precisou desempenhar hercúleo esforço para ser reconhecida como arte e não só como processo mecânico de fixação do real. Esses embates e de outras características complexas inerentes à fotografia suscitaram a elaboração de teses e a realização de pesquisas e reflexões teórico-metodológicas. Para além da polêmica acadêmico-científica a fotografia exerce ainda, mesmo depois de mais de um século da sua criação, grande fascínio sobre as pessoas.

A suposta primeira imagem fotográfica, atribuída a Joseph Nicéphore Niépce.
A suposta primeira imagem fotográfica, atribuída a Joseph Nicéphore Niépce.

A capacidade de registrar, principalmente, a forma humana o mais próximo possível do real torna a técnica fotográfica e a fotografia como artefato como objeto de desejo e de contemplação beirando o limite da magia. Muitas etnias indígenas pelo mundo afora acreditam que a fotografia aprisiona a alma, assim, há muitos relatos de índios que não se deixam fotografar.

Recentemente na tragédia que assolou nossa vizinha e querida São Luiz do Paraitinga, felizmente só houve uma morte, no entanto perdeu-se muitas referências identitárias, entre elas uma das mais sentidas, sem dúvida, foram, além das próprias residências, as fotografias. Imagens das pessoas queridas que já faleceram, de momentos especiais e de tantos outros aspectos da vida perderam-se, quase como se fosse um pedaço da vida que se perdeu.

São Luiz do Paraitinga durante a enchente de 2010. Foto: Lucas Lacaz Ruiz/A13
São Luiz do Paraitinga durante a enchente de 2010. Foto: Lucas Lacaz Ruiz/A13

A relação que estabelecemos com a fotografia engloba aspectos relativos à afetividade de modo muito significativo.

As fotografias também são o que se pode chamar de suportes de memória. No âmbito individual, a memória humana desenvolve mecanismos de auto-defesa, assim, quando perdemos uma pessoa querida nosso subconsciente vai paulatinamente, com o decorrer do tempo, apagando de nossa memória a imagem dessa pessoa. Para driblar essa auto-defesa recorremos à fotografia. Além disso, ao olhar uma fotografia é possível evocar a lembrança do momento e do contexto em que ela foi tirada. Esse é um dos motivos pelos quais as fotos são guardadas com zelo revestido de sacralidade. Coletivamente a fotografia permite, por exemplo, que novas gerações conheçam aspectos de suas cidades que não existem mais.

Em uma de suas crônicas, coligidas na obra Conversando com a saudade, Emílio Amadei Beringhs confirma essas proposições:

Quando a gente toma um álbum antigo da cidade de Taubaté, quando folheia um livro de anotações históricas ou quando se tem à vista uma velha fotografia, é tomada, desde logo, por um sentimento estranho, misto de saudade e admiração. Ah! Amigos! Como é bom, de vez em quando, a gente olhar para um retrato antigo! […] Uma velha fotografia bole com a gente, acordando sentimentos escondidos nos escaninhos do nosso pensamento!

Remedica Falco. Acervo Maria Morgado de Abreu
Remedica Falco. Acervo Maria Morgado de Abreu

Individualmente, como munícipes, cada um de nós se reconhece nas imagens de sua cidade. As ruas e locais públicos como praças, monumentos, instituições, evocam lembranças de fatos coletivos que tiveram significados individuais.

O historiador francês Jacques Le Goff, em sua obra Por amor às cidades explica que: “O orgulho urbano é feito da imbricação entre a cidade real e a cidade imaginada, sonhada por seus habitantes e por aqueles que a trazem à luz”.

“Os que a trazem à luz” como afirma Le Goff podem ser tanto os administradores, como o prefeito, os secretários, os vereadores, os comerciantes, quanto os fotógrafos que registraram imagens das cidades em diferentes momentos de sua História.

Taubaté, com sua localização privilegiada entre São Paulo e Rio de Janeiro, teve muitos fotógrafos de destaque, inclusive uma mulher: Remedica Falco, professora de desenho e filha de fotógrafo, que precisa ser mais estudada. E conta com um Museu da Imagem e do Som, no qual estão guardados registros significativos no que tange à quantidade e à qualidade.

Dúvida, questão, crise? Frequentemente quando mexemos com a memória entramos em crise, mas acredito que seja melhor entrar em crise do que deixar cair no esquecimento. E não se deve apenas curtir a nostalgia, deve-se arregaçar as mangas e lutar para continuarmos a ter a imagem que sonhamos e que já tivemos um dia de nossa cidade, pois, como já disse Charles Baudelaire: “A forma de uma cidade muda mais depressa, lamentavelmente, que o coração de seus habitantes”. Mas as fotografias permitem registrar o que foi e trazer à tona nas nossas lembranças a cidade na qual vivemos.

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Rachel Duarte Abdala é professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté

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1 Comment

  • como sempre um ótimo texto e com o tema dessa vez único e maravilhoso!

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