Igreja Matriz, coisa de político

 Igreja Matriz, coisa de político

Por Angelo Rubim

Até o final do Império o Brasil era oficialmente católico. O bispado e muitos outros cargos eclesiásticos eram escolhidos pelo imperador. Evidentemente, essa prática foi se reduzindo conforme o Império enfraquecia. Até o último dia do antigo regime foi assim. Com a República instalada, em 1889, o governo provisório tratou logo de promover a separação, no entanto, continuou enorme confusão a respeito dessa condição. Os católicos em geral imaginavam que as Câmaras ainda tinham obrigações com a Igreja. Isso foi um fenômeno nacional.

Em Taubaté, diferente da maioria das outras cidades, o grupo político que tomou o poder na República não foi aquele que estava no poder durante o Império.  O grupo que assumiu o poder com o fim do governo provisório foi aquele de origem Republicana, os que defendiam  os ideais da República, como a liberdade. Logo, seria natural que as confusões entre Igreja e Estado fossem de baixo impacto. Grande engano!

Catedral de São Francisco das Chagas, a Igreja Matriz de Taubaté, nos anos 1930
Catedral de São Francisco das Chagas, a Igreja Matriz de Taubaté, nos anos 1930

Os anos finais do século 19 assistiram a gradativa deterioração do aspecto físico da Igreja Matriz de Taubaté (a Catedral de São Francisco das Chagas). No final do ano de 1900, já é possível observar, nos textos de jornais, as primeiras reclamações sobre o estado do edifício. Obras de manutenção seriam necessárias, a custo elevado.

Em 1902, quando a República tinha apenas treze anos, a Câmara Municipal anunciou na ata da Sessão de 2 de janeiro, conceder auxílio de 2:000$000 Rs (Dois Contos de Réis) para a manutenção da Igreja Matriz, ou, em valores atuais, o preço de um carro médio (entre 70 e 80 mil reais). A justificativa se dava no valor social do edifício:

a Igreja Matriz é um edifício público que por sua importância social, moral e religiosa mais se salienta no meio de uma população e pelo qual aquilata-se do adiantamento de sua civilização e da sua louvável generosidade; Considerando que na cooperação dos melhoramentos desse edifício, a que se prendem as tradições mais gloriosas deste Município, satisfaz-se o desejo unânime da quase totalidade desta população católica; Considerando que em várias localidades as Câmaras Municipais tem largamente contribuído para o mesmo fim com geral contentamento de seus respectivos munícipes. (Ata da 59ª Sessão Ordinária sob a presidência do senhor Coronel Francisco Gomes Vieira, Atas da Câmara, 02/01/1902)

O Taubateano, 5 de janeiro de 1902. Acervo DMPAH
O Taubateano, 5 de janeiro de 1902. Acervo DMPAH

A notícia se espalhou com enorme rapidez, e o jornal de oposição ao governo tratou logo de criticar a ação da Câmara. Sob o título “Escandalo! Para onde vamos? A Camara Municipal embrulhada”, O Taubateano, na edição de 5 de janeiro de 1902, aproveitou para alfinetar o Jornal de Taubaté, de situação, e os vereadores:

“Se isso se desse em um logar, cujo povo fosse ignorante, e os eleitos não fossem republicanos, vá lá, que tudo referente a essa criminosa proposta ficasse em silencio, mas como O Taubateano é jornal sentinella avançada das leis republicanas, não podemos deixar esse acto escandaloso sem protesto”.

Um detalhe interessante, o grupo de oposição era monarquista, e O Taubateano, por consequência, também. A briga Republicano versus Monarquistas estava longe de acabar.

O periódico se sustentou na Constituição da União para criticar o projeto da Câmara. Destacaram especialmente o artigo 68, que assegura a “autonomia do município, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. E pergunta:

“Por acaso o subvencionar ou auxiliar a Câmara Municipal com 2:000$ de réis as obras da Matriz será tratar do peculiar interesse do município?”.

O Taubateano acusa a Câmara de romper a Constituição e se reporta ao artigo 11 da lei maior que determinava que “é vedado aos Estados, como a União, estabelecer, SUBVENCIONAR (grifo do jornal) ou embaraçar o exercicio de cultos religiosos”.

Jornal de Taubaté, 29 de janeiro de 1902. Acervo DMPAH
Jornal de Taubaté, 29 de janeiro de 1902. Acervo DMPAH

A resposta do Jornal de Taubaté veio tarde, na edição de 29 de janeiro de 1902, quando um articulista sob o pseudônimo de “C”, lança mão da gramática para explicar a ação da Câmara. O autor transcreve o parágrafo sétimo do artigo 72 da Constituição: “Nenhum culto ou egreja gozará de subvenção official, etc”. E emenda com uma explicação gramatical:

“Poder-se ia dizer que subvenção é simplesmente auxilio, si aquella expressão não estivesse precedida do gozará.
O verbo gozar, dá idéa de uma qualquer cousa mais permanente, mais duradoura que um auxilio feito em uma única prestação.[…] Muitas vezes este verbo não se oppõe a que o gozo seja de momento; mas, neste caso, é mister que entre elle e o substantivo esteja separando-os um determinativo de tempo. Sendo assim, para que se podes é dar aquella interpretação ao texto constitucional, era forçoso que entre – gozará e – de subvenção, houvesse um adjectivo qualquer, indicando a transitoriedade do verbo. Demais, será simplesmente auxilio, socorro, o synonimo de subvenção? […] interpretando, pois, grammaticalmente o §7º do art. 72 da Constituição Federal, quer se dê a expressão subvenção a significação de auxilio, quer se lhe conceda a verdadeira significação – pensão – temos que Ella absoluctamente não se oppõe a concessão feita pela Camara Municipal em favor das obras da Matriz.”

O jornal ataca acusando O Taubateano de ter assumido uma guerra anticatólica e por “forçar uma interpretação a seu bel prazer”.

Igreja Matriz nos anos 1940. MISTAU
Igreja Matriz nos anos 1940. MISTAU

Antecipando-se a esse argumento, na edição de 26 de janeiro, O Taubateano afirma não ter rancor religioso, mas ao desrespeito à lei. E que a Câmara poderia votar a verba para qualquer outro fim, menos para culto ou religião.

No dia 1 de fevereiro, desdenha do opositor chamando-o de ignorante em matéria legislativa. Revela que a prática de ignorar as Constituições da União e do Estado eram comuns em outras cidades, mas que nem isso justificaria a ação dos taubateanos, tendo em vista que “abuso não justifica abuso”.

A resposta dos republicanos veio na edição de 19 de fevereiro do Jornal de Taubaté:

“Pelas deduções tiradas nos artigos antecedentes, vê-se claramente que de abuso não se pode taxar a deliberação referida. Cumpre-nos agora mostrar que é legitimo o direito de imitar as outras Camaras, que concederam auxílios idênticos.”

Evocando Kant, o jornal alega que

“dando, como dá, o texto legislativo logar a duvidas mui notáveis, é de ver que seja applicada, em caso de carecer observal-o, uma interpretação equitativa e si é erro chegar a conclusão que chegaram as camaras municipais que auxiliaram egrejas, temos a nosso favor aquele brocardo jurídico, justificado pela equidade. Equidade, devem saber os redactores do Equidade, devem saber os redactores doTaubateano, é, na phrase de Kant, ‘a adocicação das asperesas da lei, emquanto não offende direitos de outrem’”.

Coronel Gomes Vieira. Imagem publicada no jornal A Verdade de 11 de junho de 1903. Acervo DMPAH
Coronel Gomes Vieira. Imagem publicada no jornal A Verdade de 11 de junho de 1903. Acervo DMPAH

À época, um dos mais influentes políticos da cidade era o vereador José Gomes Vieira – que presidiu a sessão que determinou a doação à igreja -, conhecido por não pertencer a nenhum dos dois grupos políticos. Nunca se manifestou monarquista, nem republicano. O político formava uma enorme base política na cidade, tendo grande número de eleitores, alianças importantes no governo estadual e federal. Era, portanto, o aliado ideal para qualquer que fosse o governante de plantão.

A resolução nº 70, que dispunha da doação de dois contos de réis para a reforma da Matriz foi por água abaixo a partir do momento que Vieira retirou todos os apoios ao grupo republicano e passou a fazer coro com os monarquistas que escreviam n’O Taubateano. O projeto não foi aprovado, no que se configurou a primeira de uma série de derrotas dos republicanos diante dos ricos e influentes monarquistas que estavam do lado de fora do poder, revelando que a mentalidade do político nos primeiros anos da República era ainda muito ligada aos costumes políticos do Império, condição perpetuada pela política regionalista institucionalizada por Campos Salles e interrompida somente com a criação do Estado Novo.

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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.

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