O Turco do Mercado

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Texto de Renato Teixeira

Meu pai tinha amigos influentes em Taubaté  com que havia estudado na mesma classe nos tempos ginasianos. Theodorico de Oliveira, meu avô taubateano, havia ficado viúvo e internou meu pai no Diocesano.

Zé Dias, Tinho Dias, Nilo de Mattos, eram na minha impressão infanto-juvenil, talvez os mais queridos. Foram eles que organizaram a vinda de meu pai de Ubatuba para que eu e Roberto pudéssemos ir para o ginásio.

Naquela altura do campeonato entra em cena outro personagem marcante na vida familiar dos Teixeira de Oliveira: Herculano do Livramento Prado.  Não me lembro de ter conhecido na vida pessoa mais elegante e gentil que o doutor Herculano. Foi ele quem deu a decisão final para que mudássemos de vez para a terra de Jaurés Guisard.

Eu tinha dez para onze anos de idade e este foi o primeiro grande evento que me aconteceu na vida. Se para meus pais era uma questão de adaptação a uma nova cidade, para mim era o começo de uma vida. Até então vivera comodamente no conforto da condição de menino. Era como se eu finalmente entrasse no jogo. A partir dali eu já teria alguma autonomia para ir sozinho ate o armazém, por exemplo.

Expresso Rodoviário Atlântico. Acervo railbuss.com

Minha chegada se deu na praça do mercado onde antigamente existia uma parada de ônibus. Era ali que aportavam os possantes veículos do Expresso Rodoviário Atlântico. Hora do almoço, sol a pino, um certo alvoroço e aquela inesquecível variação de  sabores e temperos de comida pairando no ar e substituindo aos poucos o cheiro de óleo diesel impregnado nas narinas empoeiradas dos viajantes daquele tempo. Era 1960.

A primeira visão que tive da cidade no momento em que lhe pus os pés, trago ate hoje desenhado na lembrança. Na calçada à esquerda, descendo até a parte frontal do mercado, enfileirava-se uma sequência de lojas de armarinho que pareciam emergir de mundos que eu sequer supunha que existissem. Eram os turcos do mercado e suas lojas semiescuras com quilômetros de tecidos enrolados e que, quando expostos aos clientes, produzem um dos sons mais agradáveis que já ouvi na vida.

Em Ubatuba não havia uma parede daquelas. Lá na praia as coisas não me pareciam tão sérias. Aquela parede de lojas com vestidos expostos e barris repletos de mostruário de panos coloridos, hoje na memória, não tem cor. Lembro de tudo em preto e branco. Pra começar, nem eram turcos. Eram sírios libaneses. Para nós eram todos Salim, e pronto. Passávamos longe das questões étnicas.

Pátio do Mercado em 1969. Acervo Maria Morgado de Abreu

Ali viveu e ali conheci meu irmão Zé Carlos Sebe. Lembro dele descendo a escada do sobrado segurando seus livros. Já era um craque, pois, a escola, o conhecimento e a cultura sempre lhe caíram como luvas.

Mas aquela visão da loja dos turcos com o passar dos anos foi ganhando uma aparência épica porque eu comecei a bordá-la com detalhes que, com o tempo, somaram-se e acabaram construindo um grande painel que simboliza o princípio de tudo, o começo de uma paixão, de um destino, de um sentimento.

Compus uma canção impregnadade fantasias e deduções poéticas inspiradas nessa primeira visão que tive das terras do Visconde de Sabugosa.

 

Salim
O turco do mercado
Vende tecidos
Vende relógios
Vende anéis de noivado
E na cidade todo mundo diz
Que um turco só põe o nariz
Onde houver lucro assegurado

Salim
O turco do mercado
Já foi mascate
Foi alfaiate
Candidato a deputado

E de aventura em aventura
Um dia a sorte lhe sorriu
E ele simplesmente se serviu

Foram-se os tempos
Das vacas magras
Salim rebanha
Contas bancárias
Filhos doutores
Muitas amantes…

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Renato Teixeira (Publicado originalmente na edição 560 do Jornal Contato)

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