No último dia 17, divulgamos aqui no Almanaque Urupês uma notícia preocupante: um dos patrimônios culturais de Taubaté pode ser descaracterizado em definitivo. Trata-se do pavão feito na Rua Imaculada e na Casa do Figureiro, símbolo do folclore paulista.
A história das figureiras e figureiros de Taubaté já foi muito discutida. Muita gente já estudou (recomendo a leitura da tese de doutoramento do professor Marcelo Pires na biblioteca da UNICAMP). Mas parece que nos últimos tempos o assunto anda um pouco esquecido, deixado de canto ou negligenciado. Aposto nisso. E sou um praticante: confesso que nunca pensei em estudar a tradição figureira com seriedade como tenho pensado ultimamente.
Devo fazer uma ressalva: um professor da Universidade de Taubaté faz, há anos, um trabalho de acompanhamento dos figureiros. Salvo engano, o professor Armindo Boll tem um livro já no prelo que versa sobre essa antiga tradição taubateana. Há uma luz no fim do túnel (?).
Um belíssimo estudo sobre a mídia regional e sua relação com o folclore, assinado pelo jornalista Francisco de Assis, detectou que a arte figurativa no Vale do Paraíba era pouco divulgada. O público regional só começou a se interessar pela Rua da Imaculada depois do concurso realizado pela Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades (SUTACO), para a escolha do símbolo do folclore paulista, em 1979. No concurso, o pavão em relevo, confeccionado por Maria Cândida Santos, foi o vencedor. Dali em diante, a Rua da Imaculada passou a ser referência nacional quando o assunto é o folclore do Vale do Paraíba.
Apenas para reforçar: quem não demonstrava grande interesse era a mídia regional. Os jornais das capitais conheciam, e muito bem, aquela rua que fica às margens da Rodovia Pres. Dutra.
Maria Morgado de Abreu foi uma das primeiras (se não a primeira) pesquisadoras locais a dedicar algumas linhas à história das figureiras. Em artigo publicado em 1967, na revista Paulistânia nº 73, a historiadora resumiu, em quatro páginas, toda a história daqueles artistas até então, fez, inclusive, o levantamento do número de figureiros que existiam na cidade, eram 22 artistas, incluindo os que não moravam na Rua da Imaculada.
O galinho do céu não era o único motivo esculpido pelas figureiras. “Coloridas e pitorescas figurinhas de tipos populares contam usos e costumes: vendedores de galinhas, de laranjas; leiteiro, lenhador; mulheres socando no pilão, tocando galinhas e patos com a vassoura, costurando e máquinas de mão; o ‘bichento tirando o bicho do pé… A temática, às vezes, é enriquecida de assuntos novos que o figureiro vê ou escuta. É o caso das figurinhas que representam os personagens do ‘mundo infantil de Monteiro Lobato’ […] Os figureiros gostam de animais e com eles convivem. Criam então uma profusão de figurinhas zoomorfas: burrinho, galinha com pintinhos, carneiro, galo, vaca, e um famoso pavão que de tão bonito, lá no Morro é chamado de Galinho do Céu.”
Quando publicou o artigo, o Vale do Paraíba, e Taubaté em especial, gozava de certo reconhecimento como centro de produção folclórica. O Correio Paulistano de agosto de 1960 já havia noticiado que o Galo do Céu foi escolhido como símbolo do mês do folclore naquele ano. (14/08/1960). No ano anterior, os “Galos do Céu”, da artista joseense Maria Francisca Frois, fizeram parte da “Exposição de Cerâmica figurativa Popular Brasileira”, promovida pelo Serviço de Belas Artes da Biblioteca Municipal de São Paulo. Em 1964, o pavão estampava o selo comemorativo da Semana do Folclore pelos Correios.
Foram os presépios do período natalino que projetaram Taubaté como um dos maiores centros de folclore do país, conforme anunciou o jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 25 de agosto de 1974. E completava: “… a cerâmica é o forte de Taubaté. A habilidade na modelagem da argila é mais uma herança portuguesa, do que do indio ou do negro. […] São famosos os presepios confeccionados em barro, principalmente os feitos pelas irmãs Candida, Edite e Luiza, na rua Imaculada, no Alto de São João. Além dessas, trabalham com cerâmica dona Idalina, a “mulher do padeiro”, especialista em anjinhos dourados; Dona Edwiges, dona Maria e dezenas de figureiros que moram na rua Imaculada, ‘meca’ do artesanato taubateano.
A pergunta que não quer calar: por que um pavão?
São várias as versões para explicar a introdução do pavão entre as figuras. Uma das explicações mais interessantes vem do Diário de São Paulo, de 21 de dezembro de 1965. Sob o título “No presépio ‘caipira’ de Taubaté gambá é o bom e o cabrito o mau”, escrito por Almeida Brandão.
“Explicam, na sua ingenuidade, os figureiros que quando o galinho do céu cantou anunciando o nascimento de Jesus, a vaca e a mula correram a se colocar atrás da mangedoura e com o seu bafejo aquecerem o Menino Deus.
O gambá foi encarregado de levar o leite da jumenta para Jesus, contudo, achou que não devia aproximar-se do Messias sem antes tomar um banho, pois como é notório o gambá exala odor terrivel. Esse gesto do pequeno animal comoveu Jesus que concedeu-lhe uma graça: a gambá dá a luz a seus filhotes sem sofrer nenhuma dor durante o parto.
O cabrito é colocato no presépio em ultimo lugar. Os figureiros esclarecem que o caprino ao ouvir o chamado do galinho do céu, dirigiu-se impropérios. O que levou Jesus a castigá-lo condenando-o a quando tivesse que falar com seus iguais o fazer com tal alarido que todos tomassem conhecimento de sua conversa.
MODIFICAÇÕES
O jornalista Ramão Portão, estudioso do folclore valeparaibano e um dos maiores colecionadores de figuras de caramica e madeira da região, explica que o galinho do céu, que parece-se muito com um pavão, passou a ser imagem de evidencia nos presépios caipiras porque, há muitos anos, dirante festejos de Natal, o prefeito de Taubaté, colocou no jardim um casal desta ave.
Os caboclos ao verem os lindos pavões disseram que era o galinho do céu, e assim passou ele a figurar nos presépios. Informou ainda o jornalista que até o natal o Menino Jesus fica na mangedoura, e os Reis Magos aparecem montados em mulas, pois os caboclos não conhecem o camelo. Depois do dia 25 de dezembro até o dia de Reis, Jesus, nu, é colocado de pé no centro do estábulo e os Reis magos ajoelhados reverenciam-no”
Será essa a origem do pavão nos presépios dos figureiros?
Difícil saber, mas a história é fantástica.
Enfim, estamos na iminência de uma modificação no tradicional pavão taubateano. O azul ultramar está no fim. O que será que deve ser feito?
Em entrevista de Oswald de Andrade Filho ao jornal A Gazeta, do Rio de Janeiro, publicada em 5 de dezembro de 1956, quando questionado se havia perigo de desaparecer o folclore (é uma velha preocupação), o artista respondeu:
“Perigo sempre há, haja vista as famosas bonecas carajás, que já estão quase que industrializadas. Não deixam de ser folclore, não deixam de ser uma maravilha. Mas, já perderam seu primitivismo. A mesma coisa acontece com a ceramica do norte, que embora muito boa já está industrializada. Para proteger o artezanato popular, a unica providencia será incentivar a compra dos objetos. Os problemas dos figureiros são grandes. O economico é um deles. Os figureiros são todos pessoas que não vivem disso. Só fazem as figuras em determinadas epocas do ano. Outro problema é que eles mesmos não sabem ainda o que desejam fazer. Não estão seguros de si. Um exemplo disso é a influencia de Walt Disney na ceramica figureira do Vale do Paraiba. Outro problema, ainda, é a tecnica demasiadamente primitiva. Com a figurinha do Galo do Céu, por exemplo acontece isto: é fragilissima, porque nãov ai ao forno. E não vai ao forno porque tem patinhas de madeira, que se queimaria. Mas, não se pode, nem se deve influir, procurando resolver para eles esses problemas. Eles devem chegar por si mesmos às soluções. Por isso, digo que a unica providencia imediata é incentivar a compra da ceramica figureira o mesmo da utilitaria.”
O galinho, mesmo que de outras cores, não vai deixar de ser folclore, uma tradição valeparaibana. Mas, a partir das observações de Oswald de Andrade, feita no já distante ano de 1956, deveremos nos questionar se quem está do lado de fora deve interferir nessa transformação anunciada ou se os figureiros devem ser deixados à própria sorte.
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É digno de nota uma observação: quase toda a pesquisa que fiz para esse pequeno texto foi feita em arquivos digitais. É uma das bandeiras deste Almanaque a digitalização de documentos. É a melhor maneira de encurtar o caminho para as pesquisas, facilitar o acesso e melhorar a produção historiográfica.
Para quem estiver curioso, aqui vai o link para pesquisas de cadernos folclóricos no acervo do IPHAN, são mais de 50 mil páginas dedicadas ao assunto, basta digitar a palavra que quer encontrar e pronto: http://www.docvirt.com/DocReader.net/DocReader.aspx?bib=Tematico&PagFis=1
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2 Comments
Professor Ângelo,
Mais um “Mo(vi)mento” com novas coincidências. No domingo passado, a caminho de Taubaté, pensei muito no Brandão. Quando comecei no jornalismo, ele foi um dos meus “coachs”. Na época do texto citado em teu artigo, Brandão andava para baixo e para cima com russos. Andavam atrás do petróleo retirado do xisto, salvo engano abundante em Pindamonhangaba e num local perto de Curitiba. Em Pinda, os russos iriam fazer uma “joint venture” com a Petrobrás. No Paraná, onde ele me levou, começaria uma usina experimental dos soviéticos. Parece que faltou xisto. Não me lembro mais da estória. O curioso é que tudo isso acontecia em plena “ditadura” anticomunista.
Ramão Gomes Portão foi mais que um confrade. Foi amigo e companheiro de ideal. Ele era o principal repórter do Notícias Populares, à época do genial Jean Mellé. Juntos batalhamos e implantamos os “Plantões de Serviço Social” nas delegacias de polícia. É uma história longa. Mas, é dessa iniciativa que brotaram outras como a Delegacia da Mulher, a Delegacia do Idoso e tantas mais que usam a polícia como fator de aglutinação das pessoas. O canalha Montoro acabou com os plantões de serviço social. Resultado: mais violência na cidade.
Nunca imaginei reencontrar as emoções que vivi com Almeida Brandão (incrível, eu não consegui me lembrar do Almeida no domingo passado) e Ramão Gomes Portão num artigo escrito por meu filho. É a terceira coincidência.
(Detalhe: o último parágrafo precisa de correção. Ou “O galinho ….não vai”, ou “Os galinhos…não vão”. Se você puder reescrever o parágrafo todo, melhor. Está desafinado em relação ao resto do texto. Nunca se esqueça que o último parágrafo de um artigo é meio como o último terceto de um soneto: a chave de ouro.) Um beijo, meu filho.
Ramão Portão tem me chamado muito atenção. Os textos que escreveu são magistrais, e tem muita coisa sobre essas tradições valeparaibanas, talvez porque ele é da nossa vizinha Guaratinguetá.
Aquilo que disse ao final é uma contastação incontestável: as digitalizações de acervos permitem garimpar verdadeiras preciosidades.
Grandes escritores, grandes histórias estão aí para serem conhecidas ou relembradas. E essa santa internet é algo revolucionário.
Via a digitalização!
Que erro grotesco que cometi no final desse texto. É aquilo que já lhe disse, depois que escrevo, não consigo olhar de novo para o texto…
E o último parágrafo é fruto do cansaço. Poderia ter feito mais um tratado sobre o assunto, mas tive que interromper com tudo, para não alongar a conversa.