No dia 29 de março de 1942 falecia em Taubaté, Felix Guisard
Texto de Cláudia Martins*
FELIX GUISARD: O PIONEIRO DA INDÚSTRIA TAUBATEANA
Taubaté, 29 de março de 1942.
O apito da fábrica tocou mais cedo do que de costume, o dia sequer havia clareado. No centro da cidade havia uma multidão de pessoas pesarosas, uma grande comoção popular que Taubaté nunca tinha visto. Homens, mulheres e crianças choravam pela morte de um homem, cujos funerais aconteciam nas dependências da fábrica de tecidos da cidade. Na cabeceira do caixão mortuário, um crucifixo, e em volta, apenas algumas tochas iluminavam o corpo.
Desde as seis da manhã, desfilavam amigos, parentes e operários. Aquela não era uma manifestação coletiva – um por um se curvava diante do falecido e beijava, com o rosto coberto de lágrimas, as mãos do amigo. Uma operária contempla o rosto no caixão e sussurra algo em seu ouvido, como se estivesse agradecendo ou se despedindo. Outra levanta o filhinho pequeno para que veja pela primeira e última vez a fisionomia do velho homem.
E o velório teve grande movimento de pessoas pelo dia todo. Por volta das quatro da tarde, foi realizado o último desejo do falecido. Ele queria que seu corpo fizesse uma última inspeção pela fábrica. As pessoas se espremiam para carregar o caixão e a multidão evoluía pelas ruas estreitas. Primeiro, o corpo visitou a fábrica de cretones, depois a fábrica de morins e, por último, os escritórios da companhia que fundou.
Realizado o pedido, o cortejo fúnebre partiu para o cemitério da Ordem Terceira de São Francisco para o sepultamento. Durante o trajeto pelas ruas da cidade, um avião evoluía sobre a multidão e deixava cair punhados de flores em cima da urna funerária. Era o “Jacques Félix”, doado pela própria companhia ao aeroclube local.
Cerca de vinte mil pessoas prestavam suas homenagens, 70% da população urbana de Taubaté, que era de 28 mil habitantes. A cidade suspendeu todas as suas atividades – teatros, cinemas e casas comerciais que normalmente funcionavam aos domingos, cerraram suas portas pelo falecimento do ilustre empresário. Ninguém menos que Felix Guisard, um dos principais fundadores da Companhia Taubaté Industrial (CTI) e o grande personagem da modernização da cidade. Nas palavras do escritor Monteiro Lobato, “o segundo fundador de Taubaté”.
Multidão acompanha enterro de Felix Guisard
Há exatos 70 anos, Taubaté dava adeus ao homem que transformou a cidade de uma vez por todas e personificou o processo de industrialização do Vale do Paraíba. O trabalho econômico, político e social realizado por Felix Guisard ficou refletido no dia de seus funerais: desde o operário mais humilde, às organizações mais influentes, como a FIESP, prestaram suas homenagens. Todos sentiam que, naquele dia, deviam algo ao distinto industrial.
Não é para menos. Além de ser o principal idealizador da primeira indústria de grande porte da região, Guisard foi conhecido pelos diversos benefícios concedidos aos operários, entre eles, Colônia de Férias em Ubatuba, Vila Operária, Clube Náutico, estádio de esportes e grupo escolar. Também foi idealizador de projetos grandiosos, como a Usina Hidrelétrica Felix Guisard, que fornecia energia para a fábrica e para a cidade de Redenção da Serra. Depois da Segunda Guerra Mundial, também passaram a receber energia da usina, as cidades de São Luiz do Paraitinga, Natividade da Serra e Ubatuba.
Na década de 20, parecia não faltar mais nada para a vida do empresário. Mas ele queria mais. Em 1924, é eleito prefeito municipal e participa de duras discussões políticas contra os irmãos Pedro e César Costa, da oposição. Além de cultivar esses conflitos, Felix promoveu algumas melhorias para a cidade enquanto prefeito, como a construção de estradas, o planejamento da rede de esgoto, o calçamento das ruas com paralelepípedos e a criação oficial do Distrito de Quiririm, onde a colônia italiana estava instalada desde o século XIX.
No entanto, o que deu maior destaque a Felix Guisard em Taubaté não foram seus investimentos na cidade enquanto industrial, nem sua contribuição como político, mas sim, as obras sociais que realizou como homem. Suas ações filantrópicas que atingiam tão diretamente a vida dos operários da CTI e de cada munícipe foram responsáveis pela criação de um verdadeiro “mito”, que permaneceria na memória da cidade ainda por muitos anos. Filantropia para uns, dominação disfarçada para outros.
Dentre suas obras sociais mais importantes destacam-se o Asilo de Mendigos e o Dispensário de Tuberculosos. Também foi fundador da ACIT (Associação Comercial e Industrial de Taubaté) e da escola profissionalizante para jovens, que depois se transformou no Senai-Taubaté.
A morte de Guisard, aos 80 anos, também marca uma nova fase da Companhia Taubaté Industrial. Sem a presença do seu maior líder e desfavorecida pelas políticas econômicas que se seguiram, a CTI foi caminhando aos poucos para o fim. Onze anos depois do falecimento do empresário, em1953, afábrica é vendida pelos herdeiros ao grupo Velloso Borges. Quase duas décadas depois, quando já estava sem condições de prosseguir com os trabalhos, a CTI é comprada para fechamento pela Companhia Nacional de Tecidos Nova América. A falência é decretada na década de 80, quando a fábrica é finalmente leiloada.
O edifício Felix Guisard, o prédio que ostenta o grande relógio, é o cartão postal de Taubaté. Sua construção só foi concluída depois da morte do empresário, na década de 40, mas é o símbolo que mais lembra o domínio de Guisard na cidade, e continua despertando os taubateanos ao trabalho, controlando o que hoje tem muito valor: o tempo.
A indústria têxtil cumpriu o seu ciclo de atividade pioneira da indústria, como na Primeira Revolução Industrial, e saiu de cena para dar espaço a outros setores produtivos, principalmente o automobilístico e o eletrônico. Apesar do fim da companhia, o sonho de Guisard, de transformar aquele centro provinciano em pólo industrial, parece ter sido conquistado.
Mas a herança que Felix Guisard deixou à cidade não foi só econômica. O pioneiro da indústria taubateana também deixou um exemplo de trabalho e dedicação. De que o sucesso pessoal e profissional não acontece tão facilmente na vida das pessoas, mas depende de muito estudo e dedicação integral. E que um caminho para atingir esse sucesso pode ser a prática das três palavrinhas que ele carregou consigo ao longo da vida: “Paciência, Prudência e Perseverança”.
*Cláudia Martins é jornalista e produtora da TV Vanguarda. É autora do livro-reportagem “Felix Guisard: a trajetória do pioneiro da indústria taubateana”, que relata a vida do empresário desde a infância em Minas Gerais ao auge de sua carreira no começo do século XX. A biografia foi apresentada como trabalho de conclusão de curso e ainda está à espera de publicação.
Principais fontes:
AUDRÁ, M. C. G. Olhando o Passado. Arquivo Particular.
RIBEIRO, M. A. M. Taubaté e a Alternativa Industrial: 1891-1933. (Dissertação de Mestradoem História Social). São Paulo: FFLCH/USP, 1982.
RICCI, F. Indústrias Têxteis na Periferia – Origens e Desenvolvimento: o caso do Vale do Paraíba. São Paulo: Cabral, 2006.
SAN-MARTIN, P. G. A Companhia Taubaté Industrial. O empresário, a empresa e a cidade. (Dissertação de Mestrado em Economia). Taubaté: UNITAU, 1990.
JORNAIS DA ÉPOCA:
Correio de Taubaté
CTI Jornal
Diário de São Paulo
O Libertário
O Norte
Felix Guisard por Monteiro Lobato
“São Paulo, 31-03-42
Prezado amigo Felix Guisard:
Não me surpreendeu a morte de seu pai. Em Ubatuba ele me contou a história daquele diabetes, com que entrara em maravilhosa entente cordiale e nós sabemos o que valem essas ententes quando oitenta e tantos anos se metem de permeio. Morreu gloriosamente, pois suponho que conservou aquela lucidez e aquele encanto de espírito que nos surpreendia. Seu pai não soube o que foi decadência mental – essa suprema tragédia. Naquele inesquecível regresso de Ubatuba tive ensejo de espantar-me da absoluta perfeição com que aquele cérebro funcionava – e não me lembro de caso semelhante.
Curioso, amigo Felix: seu pai, que só conheci por umas horas, foi talvez a criatura que me inspirou mais respeito pela espécie humana.
Luminosas horas foram as em que tive a honra de tratar com um varão de tantas e tão altas superioridades. E, pois, em vez de pêsames com cheiro de cravo de defunto, receba meus parabéns por ser filho de tal Homem.
Um grande abraço do
Monteiro Lobato”
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