As bandeiras e as sociedades do Vale do Paraíba

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Texto de Luís Fernando de Lima Júnior

Na segunda metade do século XVII a região do Vale do Paraíba apresentava uma paisagem geográfica ainda selvagem, caracterizada pela vegetação fechada da Mata Atlântica, alternada com alguns campos e vegetação ciliar, nas proximidades das margens do rio. O clima era mais ameno, cerca de 5ºC mais frio e bastante úmido, por ocasião da cobertura vegetal.

Nessa época, em que não havia barragens e depredações de suas nascentes, esse mesmo rio sinuoso se comportava de maneira muito mais arisca: nos períodos das chuvas de verão suas águas alagavam grande parte da planície fluvial, praticamente dobrando a sua largura, o que tornava impraticável a ocupação dessa planície.

A fixação do povoado de São Francisco das Chagas, precursor da vila de Taubaté, no sertão do médio Paraíba, na década de 1640, consolidou-se como uma sociedade estruturada na posse da terra com o mecanismo de manutenção do poder político e na administração da mão-de-obra como garantia do poder econômico.

Como nas outras duas vilas do Vale, Jacareí e Guaratinguetá, a posse dessa terra era conseguida por concessão das Câmaras Municipais, após um pedido formal do interessado e a comprovação de capacidade de utilização produtiva das terras solicitadas, o que implicava na posse de escravos em quantidade suficiente para derrubar a mata virgem e produzir, dentro de um limite de cinco anos.

Na prática, o bom relacionamento com os oficiais da Câmara, representantes do rei de Portugal em um nível local, significava o favorecimento de uma pequena parcela da população livre, que dominava o poder político e monopolizava o acesso a essa instituição, em função de laços de parentesco e amizade.

Vale lembrar que o processo de colonização da região que hoje conhecemos como Sudeste do Brasil foi caracterizado pela pobreza e descaso das autoridades metropolitanas, se comparado ao processo do Nordeste açucareiro. Não compensava produzir açúcar nessa região, em virtude dos custos de preparação da terra e da dificuldade do escoamento da produção pela serra do Mar, ao passo que naquela, as terras eram mais adequadas e os custos de escoamento e transporte menores, até pela proximidade com o mercado europeu.

Nesse contexto, o primeiro momento da atividade econômica dessas vilas foi marcado pela predominância das expedições de apresamento indígena, conjugadas com alguma atividade agrícola de subsistência, mesmo porque a própria localização desses povoados refletia a orientação pela busca dessa mão-de-obra, em virtude de suas posições estratégicas, que serviam de base às investidas nas regiões da serra da Mantiqueira e Sul de Minas Gerais.

Após cerca de um século e meio de colonização as populações indígenas haviam sido quase que dizimadas na região do Vale, em virtude da violência do escravismo e das epidemias, causadas pelo contato de doenças européias com populações sem a devida resistência imunológica. A região do Sul de Minas, conhecida como Sertão dos Cataguazes, figurava no final do século XVII como uma reserva de mão-de-obra indígena, da qual se abasteciam os proprietários das vilas do Vale.

Os homens-bons empregavam seus recursos na armação de expedições de pequeno e médio porte, visando adentrar ao sertão para aquisição de mão-de-obra suficiente à reprodução da força coletiva de trabalho de suas vilas.

Isso implicava em um sistema em que o proprietário-armador, maior investidor e responsável pelos suprimentos da bandeira, investia pólvora, armamentos e índios guerreiros e assumia todo o risco do fracasso da expedição, na expectativa de receber pelo menos a metade dos cativos capturados, para reprodução de suas unidades produtivas, enquanto que o restante seria dividido entre os demais componentes da bandeira, na proporção do investimento de cada um deles.

Era comum a participação dos filhos dos armadores na composição dessas expedições, às vezes até em função de comando, para adestramento, aprendizagem e principalmente composição de um patrimônio. O apresamento indígena significava uma perspectiva de ascensão social para os filhos da elite, antes limitada à herança e ao dote de casamento, e servia como ponto de partida para todas as atividades produtivas, bem como uma fonte de renda, pela posse e acumulação de cativos.

Em meio à sociedade escravista dessa época, a posse da mão-de-obra representava riqueza monetária. Mesmo que juridicamente os indígenas não fossem considerados escravos, mas sim incapazes que necessitavam ser administrados e orientados nos preceitos cristãos, na prática eram tratados como mercadoria passível de arrolamento em inventários e livros de registro, com o diferencial de não se fazer alusão a seus preços. Nessa mesma época os escravos negros representavam um bem muito valorizado e requisitado no Nordeste açucareiro, o que inviabilizava a sua presença em grande escala na região do Vale, em virtude do seu alto custo de aquisição e de algumas restrições metropolitanas.

Os jovens que partiam em busca de cativos recebiam auxílio de seus pais e sogros. Participavam das armações, com o emprego de algumas somas de capital e de índios, na expectativa de expandir suas posses e construir um patrimônio, que lhes garantisse ascensão social e um bom casamento. Os homens, em geral permaneciam solteiros até constituí-lo, pelo mérito nas armações, ou pela herança. As moças filhas dos proprietários casavam-se cedo, por volta dos 14 anos e eram oferecidas aos filhos dos demais proprietários que já tivessem constituído tal patrimônio; homens adultos com mais de 30 anos.

Entre 1650, época da formação das primeiras vilas, e 1700, época da descoberta de ouro em Minas Gerais, as sociedades das vilas do Vale do Paraíba estruturaram-se economicamente em função da atividade de apresamento indígena. Os grandes proprietários serviam como armadores das expedições, enquanto que os médios e pequenos participavam, investindo seus recursos de forma a obter algum ganho ao final da expedição, com a partilha dos cativos.

As bandeiras representavam instituições organizadas e investidas de uma certa logística. Seguindo pelas gargantas de riachos e ribeirões nascidos na Mantiqueira, as armações penetravam na Mata Atlântica e seguiam por trilhas e caminhos abertos pelos próprios indígenas. Em pontos estratégicos efetuavam o plantio de milho, feijão, legumes e hortaliças, e deixavam alguns de seus componentes para manutenção do roçado. Dessa forma, quando retornassem encontravam meios de alimentar tanto a tropa quanto aos cativos trazidos do sertão.

Nessas armações, adotavam-se diversos costumes indígenas e mestiços. Deslocando-se em marcha à Paulista, compreendida como da aurora ao meio-dia, as expedições transportavam pouco alimento e dedicavam o restante do dia à caça, à pesca e à coleta de frutos do sertão. Seus componentes, em grande parte índios e mestiços, mesclavam o uso de armas de fogo, adagas de ferro e arcos-e-flechas, além de se trajar como aqueles que buscavam.

Pelo tipo de organização social das comunidades indígenas, caracterizadas por uma divisão de trabalho na qual os homens se encarregavam do plantio, caça e pesca, e as mulheres, da colheita, cuidados com as crianças e aldeia, a maior parte dos indígenas capturados pelas armações era composta justamente de mulheres e crianças, por seu comportamento mais sedentário.

O êxito e o fracasso eram uma constante na vida desses homens. Da imensa coluna de cativos amarrados uns aos outros, uns poucos chegavam às vilas do Vale, em virtude da violência, das condições e dificuldades dos caminhos e da carência de recursos. Os indígenas, muito belicosos, costumavam resistir, o que muitas vezes significava o desaparecimento de expedições inteiras.

Enquanto os homens, solteiros e casados, estavam no sertão, as mulheres tocavam seus negócios nas vilas. Quando acontecia do marido morrer em serviço, as viúvas, herdeiras, mas legalmente incapazes de administrar as heranças, dependiam da nomeação de um curador; geralmente o pai, irmão, sogro ou genro. Da mesma forma, aos órfãos era determinado um curador para administração e investimento de seus bens. Tal procedimento era regulado pelo juiz dos órfãos, cargo acumulado do juiz ordinário que presidia a Câmara Municipal.

Nesse contexto, a viuvez era algo muito passageiro. Viúvos contraíam casamento com moças, enquanto as viúvas, geralmente administradas por seus pais, representavam uma mercadoria política de grande valor, pelo dote representado pelos bens do defunto, especialmente se fosse nova e não possuísse filhos.

O investimento e aplicação dos bens dos órfãos tinham uma função social bem definida: geralmente destinados ao empréstimo a juros, regulado pela Câmara Municipal, os bens dos órfãos alimentavam o processo por servirem ao investimento no custeio de novas expedições. Se órfão possuísse como curador um familiar zeloso e influente na política municipal, sua herança seria bem aplicada e geraria lucro, que além de beneficiar o próprio curador, lhe serviria quando de sua maioridade legal. Caso o órfão não pertencesse à elite política ou não tivesse um curador desse grupo, sua herança seria utilizada como poupança destinada ao crédito público, e devolvida sem o acréscimo dos juros.

Por volta de 1700, essas sociedades sofrem profundas alterações. A descoberta do ouro das Minas Gerais marcou a derroca da do ciclo de armações de apresamento e o surgimento de novas opções econômicas para os proprietários residentes nas vilas do Vale do Paraíba. Ao se estruturar um sistema produtivo de grande concentração de população e desvinculado da produção para própria subsistência, o ciclo minerador articulou um mercado colonial interno, até então inexistente, em função do seu abastecimento de gêneros de primeira necessidade.

Nesse contexto, o recuo demográfico ocorrido em função da migração de grande parte das populações das vilas do Vale do Paraíba, no primeiro momento do ciclo minerador, promoveu a possibilidade de ascensão econômica para os proprietários que aqui permaneceram, em virtude da estruturação de um sistema de abastecimento para região mineradora, altamente lucrativo pelo processo inflacionário pela concentração de população e da escassez de víveres naquela região.

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Luís Fernando de Lima Júnior é professor de História.

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