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José Guilherme para Lobato
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Paris, 3 de abril de 1904.
Prezado Lobato,
O que há com o correio? São os mares, a dificuldade? A República adolescente não está dando no couro? Sua última carta demorou muitos meses para chegar. Faltou pouco para te telegrafar. Sabe daquelas cartas de soldados que se perdem nas trincheiras enlameadas (La Bérézina, por exemplo). Um dia alguém as encontra por milagre dentro de uma caixa de madeira que o velho intendente deixou ao neto. E as coloca em circulação, com notícias anacrônicas, mas com todo sentimento preservado. A sua estava já sem a cor da toca do tatu.
E eu aqui, na minha mansarda, de olho nas árvores já recompostas que se alinham num daqueles bulevares de Hausmman, o arquiteto-demolidor da
corte de Napoleão III. Esperando algum carteiro benevolente gritar lá de baixo com notícias de Taubaté (la lettre de Monsieur Lobatô est arrivée!), carta pelando de todas as quenturas do início do ano brasileiro. Porque por aqui, até março e abril, meu caro, é muito frio para mim, mesmo quase
mumificado com o cachecol tricoteado por Ana (a Ana P. Soares que eu te apresentei em Guaratinguetá. Pode me perguntar o que quiser na próxima,
até sobre namoros), adereço que me deixa só com os olhos de fora.
Na minha mansarda fico horas plantado, mas de um jeito nada baudelairiano. (Lembra-se do verso: Les deux mains au menton, du haut de ma mansarde, de Flores do Mal?) Preciso sentir mais essa cidade, sua pulsação, extrair e deglutir tudo o que ela tem de melhor. E até vou ousar seguir seu conselho: serei todo “portas e janelas”! Você certamente vai me cobrar pelo “ousar”. Estou vendo suas sobrancelhas formarem duas pirâmides pretas de repreensão, apontadas para o alto. Preferiria que eu escrevesse direto… Um dia aprendo com Lobato (aqui você vai me fuzilar). Que bom que encontrou algum alento na minha carta anterior, escrita de tão longe. É verdade ou é mentira? Diga-me com toda sinceridade. Pois você assina a sua com uma insuportável desolação. E eu não posso fazer nada daqui de longe. Não esqueça que há um abissal Atlântico entre nós.
Então minha carta foi só “aragem” mesmo, foi “sopro de ferida” de curta duração. Como pode ser isso, Lobato? Está quase terminando o curso (já
vou avisando que não vou conseguir viajar para a festa da formatura em 24 de dezembro), tem as terras de seu avô por aí… muita paulama para
entender…
Já sente nostalgia da São Francisco, das tertúlias com os nossos bravos Ricardo Gonçalves, Albino Camargo Neto, Cândido Negreiros, Godofredo
Rangel, Tito Lívio Brasil e Lino Moreira? O grupo Cainçalha (que nominho!) continua se reunindo no Café Guarani? Tem latido muito por lá? Vocês têm é muita sorte e, data vênia, parem de reclamar. Podem se encontrar em todo canto falando a sua língua desmedida. Eu aqui em cafés, com alguns
poucos colegas estrangeiros, cada um de um canto, restritos. Mas aqueles sentimentos que você detecta na gente, sede de saber e fome de expressão, acabam compensando tudo. Há boas galerias de arte, mas ainda as frequento com discrição, quase nunca nos vernissages. Mesmo assim, não será difícil topar um dia desses com Apolinnaire, que escreve fundamentais críticas de arte em jornais. Ou Picasso, acho que é Pablo Picasso, um pintor catalão que está começando, circula muito e atrai as garotas mais bonitas. Nos cafés, você precisa ver, é um mar de absinto. Faz sucesso por aqui, e não só no Moulin Rouge (fui uma vez só!), uma receita atribuída ao pintor Toulouse-Lautrec chamada Tremblement de Terre, que é uma mistura poderosa para a embriaguez em tempos bicudos e nem tanto: 1/2 parte de absinto e 1/2 parte de conhaque, servido em copo de vinho sobre cubos de gelo. Prepare aí, sirva para o Rangel, acostumado com a cachacinha de Minas. E depois me conte quais as perturbações causadas pelo Terremoto.
Como você arranja tempo para continuar desolado, se escreve como um doido (olha eu aqui seguindo seu conselho para ser “bruto, chucro”), se lê
desbragadamente, e se escreve sem parar? Ou não é bem assim? Continua a colaborar com o jornal do XI de Agosto, com o Minarete de Pinda e com
O Povo de Caçapava? Tem um estudante russo por aqui na Sorbonne que morreu de rir quando contei a história de um de seus pseudônimos: Lobatoyewsky.
É muito difícil, para não dizer impossível, conseguir um título em português por aqui. E entendo que não há como ter os livros que solicitei anteriormente, o do Soriano de Sousa enterrado vivo num caixão. Obrigado mesmo assim. Pois, se você não os tem em mãos, acabou dando uma aula de alguns franceses para mim, direto das estantes recheadas da biblioteca de seu avô.Eu sei, eu sei que você deve preferir os Estados Unidos à França.
Tenho cá minhas previsões de que um dia você vai se esbaldar por lá, entre arranha-céus e tecnologia. Mas eu estou por aqui, falando de literatura, e
quero me embriagar de Émile Zola. Eu bem queria ter lido Canaã, de Graça Aranha. E refletindo bem, você poderia me mandar pelo serviço de encomendas, Colis Postaux, me dizem aqui. Depois veríamos a forma de te reembolsar (não me xingue!). Você acredita que Canaã e Os Sertões, do Euclides da Cunha, estão mudando a literatura brasileira? Fiquei inteiramente interessado em cotejar Canaã com alguns escritos de Zola, fazer essa comparação. É tentador saber que Graça Aranha pode estar abrindo caminho para o “artista-filósofo”, em contraposição aos naturalistas meramente descritivistas, como você diz.
Acho que você, como escritor, nunca cairia na armadilha da descrição sem alma. Conversaremos sobre isso daqui a alguns (poucos) anos, aí em
Taubaté ou onde o escritor ou o magistrado for morar. São Paulo ou outra cidadezinha que precise de lei. Você diz que Zola lembra o “martelo-pilão
das fábricas de ferro”; os seus imitadores seriam “os martelos de quebrar coquinhos”. Foi brutal com muita gente.
Vamos deixar de lado J’accuse (1873), peça jornalística um tanto engajada de Zola, em defesa de Alfred Dreyfus, que ainda é muito lembrada por aqui
e em toda Europa. Eu gosto dela. Mas eu queria mesmo é falar do “gênio esmagador” de Zola em Le Ventre de Paris. Eu não sei se já temos o título em português. Você escreveu “gênio esmagador”, mesmo dando a entender que às vezes Zola também é excessivamente “naturalista”.
Lobato, eu estive muitas vezes no Le Halles, o mercado no centro de Paris, todo de ferro e vidro, e fiquei impressionado com o cenário da obra de Zola.
Ele “morou” no Les Halles para captar o sentimento desses comerciantes, e fez uma contundente metáfora da burguesia gorda da sua época. Foram inventariados no ventre de Paris tudo o que se vende por lá, inclusive aquela infinidade de queijos fedidos e coisas do mar que um taubateano dos matos teria dificuldade em decifrar. Mas não se trata de uma mera relação, dá para entender? Estão inventariados n’O Ventre de Paris sons, cheiros, cores. Olha só como ele descreve um dos peixes. Traduzi esse pedaço relativo aos cações: “com suas bocas que se escancaram como gárgulas chinesas e barbatanas curtas como asas de morcego – monstros montando guarda pelos tesouros das grutas oceânicas”. É soberba a descrição que ele faz de uma moça, Mademoiselle Saget, ao disfarçar que não compra no Les Halles em bancas que vendem sobras de comida de embaixadas, de ministros e restaurantes. Uma vendedora diz a Saget que seu produto vem diariamente das Tulherias. E ao servir-lhe uma fatia de cordeiro, diz que aquele pedaço de carne saiu direto do prato do próprio Napoleão III. Estou escrevendo tudo isso para lembrar a sua ótima frase: que “só os artistas lidam com as coisas eternas”.
Você me responde sobre Stendhal. Também acho Le Rouge et le Noir um assombro. Li e reli. E Chartreusse de Parme está no criado mudo. Shakespeare está na lista. Devo começar mesmo com a Tempestade? Disseram-me para começar com Hamlet…
Gostaria de estar por aí, na fazenda com você, para a gente conversar sobre os escritores geniais, aqueles que não gostam de facilidade. Você me parece um deles (olha aqui um meu tropeço, que o escandaliza. A título de provocação). Devo voltar ao Brasil daqui a dois anos. Os tostões de herança
(do ouro) estão minguando. Eu não tenho café nem bengala com iniciais no topo do castão.
Saudações do amigo J. Guilherme
P.S. Você escreve que na biblioteca de seu avô há uma coleção de Journal des Voyages, revistas ricamente ilustradas, cheias de notícias de aventuras,
que o deslumbravam quando menino. Eu cheguei a ver uma coleção dessas por aqui. São sensacionais mesmo. Uma curiosidade: fiquei sabendo que
um jovem de São Pedro dos Ferros, em Minas Gerais, tem alguns exemplares do Journal des Voyages. Parece que está na sua cola. Depois, se você quiser e tiver interesse, passo o endereço. Ele certamente vai passar mal ao te conhecer pessoalmente.
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Helcio Costa para Lobato
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Taubaté, 2 de abril de 2019
Amigo Lobato:
que felicidade receber a sua carta! Esperava notícias há tempos. Mas antes de falar de Guy de Maupassant , Edmond de Gouncourt e as agonias da literatice, que tanto preocupam a você e Rangel, tenho um aviso mais útil e mais urgente: está em casa seu casacão de lã, lembra dele? Com a chegada do outono e, depois, com a chegada do inverno, ele vai ser útil. Como chegou aqui? Paulo Dantas, nosso amigo comum, deixou na casa do meu pai logo após lançar “Cidade Enferma”, e ser obrigado a sair correndo de Campos do Jordão. Está aqui, lavado, enxaguado, no armário. Para mim, calorento que sou, a simples presença dele me deixa suando. Se quiser mando entregar aí, por um portador de confiança.
Desculpe a lembrança do Dantas. Sei o quanto ele faz você recordar Guilherme e os tempos difíceis em Campos. Lembrar do Dantas também me traz uma pontinha de tristeza. Com o tempo, nosso Capitão Jagunço foi parecendo cada vez mais com meu pai, Hélcio, que você não chegou a conhecer. Cabelos revoltos, bigode grande, óculos de armação escura e grossa. Muita gente confundia os dois, grandes amigos, com irmãos, para diversão de minha mãe, Nívia, e de dona Zuíla. Saudade de todos. Saudade do Dantas, que, enfim, venceu o desafio de ser tísico profissional e cujo coração está enterrado à sombra de um pinheiro em Campos.
Mas não quero falar de tristezas, afinal sua carta só me trouxe alegrias. E sei bem que os tempos de Campos não foram só tristes, apesar do espinho cravado no coração por Guilherme. Ora, foi na casa na Macedo Soares que você escreveu “Geografia de Dona Benta”, de uma pancada só, que tanta coisa boa trouxe a tanta gente, passageiros do navio do faz de contas pelo mundo a fora.
Agora, com sua obra entrando em domínio público, quem sabe “Geografia” ganhe uma nova leitura e Tia Nastácia consiga, enfim, aprender inglês? Não torça o nariz a essa ideia. Vale a pena pensar nela. Pena que a casa não exista mais. Seria muito bom vê-la na elegante Capivari de hoje. Mas não, foi demolida há quase 30 anos.
Também não existe mais a Padaria Pinheiro, que valia sua caminhada até a Abernéssia atrás de pão, nem a Pensão Azul, onde você sacramentou: “Temos que acabar com a burrice nacional. A partir daí seremos uma grande nação.” Pois é, não acabamos com ela ainda. Ao contrário. Tempos bicudos, meu amigo, nos quais a sua lucidez faz falta.
Mas voltando a “Geografia”, de uma sentada só, repito, você chegou a uma obra quem nem precisava de assinatura para ser sua. Não só pelos personagens, Dona Benta, Tia Nastácia, Emília, Narizinho, Pedrinho, Visconde e Rabicó, mas pelo estilo, inconfundível. Aí volto à sua carta, volto a Guy de Maupassant, Manon Lescaut, Edmond de Gouncort, que ocuparam tanto a sua correspondência com Rangel. Longe da submissão às escolas, da escrita empolada, do palavrório
rebuscado. Viva! Viva! Viva! Em “Geografia”, assim como em tantas outras obras, você está como sempre quis: livre como um passarinho. Fácil de ler, de entender.
Afinal, o que é a escrita sem gente para ler? E o que atrai gente à escrita senão a empatia com a história, com o autor, com a narrativa? Por isso sua obra fascina: seja para crianças, seja para gente grande, como eu, você optou por ser entendido.
Escrever difícil? Não paga a pena, como diria o Jeca. Mas, cá entre nós, como isso é difícil de ser entendido.
Temos que martelar em todas as frentes. Não com esses martelos de quebrar coquinho, mas com a força dos martelos de pilão. Desliteraturizar a literatura, desburocratizar a escrita, como você, meu amigo, bem sabe. Sejamos simples. Afinal, a obra, depois de nós, não nos pertence, como você mesmo ensinou ao falar do quadro de Gleyre. De “Soir” virou “Ilusões Perdidas”, graças ao boca-a-boca do público. Você, Rangel, eu, todos, estamos naquela cena de Gleyre, todos no mesmo barco. Fica a pergunta, que você mesmo formulou: em que estado voltaremos desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho da obra de Gleyre? Cansados, rotos? Em primeiro lugar, voltaremos? Eu não sei, mas, garanto, você não voltará o Lobatinho do tempo antigo, tão suficiente e pernóstico. Voltará queimado pelo sal, pelo vento, pelo mar, graças à bússola sem Norte da Barca de Gleyre.
O tempo é cruel. Como você disse a Rangel, nossa viagem parece estar chegando perto do fim. A quem interessa essa troca contínua de cartas? Somos só nós. Continuaremos no Além? Conseguiu encontrar Chico Xavier?
Por isso, insisto, quebrando a sisudez dessa carta, meu velho pulgão de couve, não se esqueça do seu sobretudo. Não sabemos como é o clima de lá. E Letícia reclama, dia sim, dia não, que aquele urso de lã cinzento ocupa muito espaço no armário. Nem que nevasse no Vale do Paraíba por anos e anos eu poderia usar na rua um coberto de mangas como aquele. Aproveito e mando, de contrapeso, meu exemplar de “Urupês” para você autografar. Apesar de velhinho, afinal, é de 44, ainda vai bem conservado, fora uma pontinha da capa, roída pelos dentinhos do Felipe, anos e anos atrás. Devolva. Ou fique: pego aí quando a saudade apertar. Cuidado, pode ser em breve. Não: achei data melhor! Depois de setembro, nas primeiras chuvas entre primavera e verão, quando as tanajuras começam a voar. Aproveito e levo para você uma lata do nosso “caviar”. Vai lamber os beiços.
Chego afinal ao fim desta carta. Vai à máquina. À lápis, sei bem, seria ruim para você ler por causa da perturbação na vista e pela minha letra, que é péssima. Foi, enfim, ao médico? Vá. Melhoras.
Mande notícias, sempre. Do lado de cá, lembro de você todos os dias. Da varanda de casa, de frente para a Mantiqueira, vejo a copa das árvores do casarão onde você nasceu, hoje transformado em Sítio do Pica-pau Amarelo. Uma mancha verde viva no meio de um mar de telhados, pelo vão dos prédios. Mas, confesso, envergonhado, eu mesmo não vou lá há anos, agora que os meninos cresceram e os voos siderais na mata ficaram cada vez mais raros. É da vida, meu caro amigo. No
embalo dessa expressão, e como seu Correio andou arisco, termino em ritmo de folguedo: Letícia manda um beijo para os seus; um beijo na família, na dona Purezinha e nas crianças; Guilhermo aproveita pra também mandar lembranças; pra todo pessoal, adeus!
Hélcio
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1 Comment
Que bom poder vivenciar esta troca de cartas, conhecer a Tia Nastácia muito antes dela virar lenda infantil, ver que alguém havia alertado Lobato de que não devia malhar o caboclo (o que ele acabou fazendo, criando o Jeca Tatu, ícone publicitário do Biotônico Fontoura). Cresci lendo Lobato. Acho que seu estilo de escrever me influenciou, e muito. Sou grato a ele por isso.