Helcio Costa para Lobato

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Taubaté, 2 de abril de 2019

Amigo Lobato:
que felicidade receber a sua carta! Esperava notícias há tempos. Mas antes de falar de Guy de Maupassant , Edmond de Gouncourt e as agonias da literatice, que tanto preocupam a você e Rangel, tenho um aviso mais útil e mais urgente: está em casa seu casacão de lã, lembra dele? Com a chegada do outono e, depois, com a chegada do inverno, ele vai ser útil. Como chegou aqui? Paulo Dantas, nosso amigo comum, deixou na casa do meu pai logo após lançar “Cidade Enferma”, e ser obrigado a sair correndo de Campos do Jordão. Está aqui, lavado, enxaguado, no armário. Para mim, calorento que sou, a simples presença dele me deixa suando. Se quiser mando entregar aí, por um portador de confiança.
Desculpe a lembrança do Dantas. Sei o quanto ele faz você recordar Guilherme e os tempos difíceis em Campos. Lembrar do Dantas também me traz uma pontinha de tristeza. Com o tempo, nosso Capitão Jagunço foi parecendo cada vez mais com meu pai, Hélcio, que você não chegou a conhecer. Cabelos revoltos, bigode grande, óculos de armação escura e grossa. Muita gente confundia os dois, grandes amigos, com irmãos, para diversão de minha mãe, Nívia, e de dona Zuíla. Saudade de todos. Saudade do Dantas, que, enfim, venceu o desafio de ser tísico profissional e cujo coração está enterrado à sombra de um pinheiro em Campos.
Mas não quero falar de tristezas, afinal sua carta só me trouxe alegrias. E sei bem que os tempos de Campos não foram só tristes, apesar do espinho cravado no coração por Guilherme. Ora, foi na casa na Macedo Soares que você escreveu “Geografia de Dona Benta”, de uma pancada só, que tanta coisa boa trouxe a tanta gente, passageiros do navio do faz de contas pelo mundo a fora.
Agora, com sua obra entrando em domínio público, quem sabe “Geografia” ganhe uma nova leitura e Tia Nastácia consiga, enfim, aprender inglês? Não torça o nariz a essa ideia. Vale a pena pensar nela. Pena que a casa não exista mais. Seria muito bom vê-la na elegante Capivari de hoje. Mas não, foi demolida há quase 30 anos.
Também não existe mais a Padaria Pinheiro, que valia sua caminhada até a Abernéssia atrás de pão, nem a Pensão Azul, onde você sacramentou: “Temos que acabar com a burrice nacional. A partir daí seremos uma grande nação.” Pois é, não acabamos com ela ainda. Ao contrário. Tempos bicudos, meu amigo, nos quais a sua lucidez faz falta.
Mas voltando a “Geografia”, de uma sentada só, repito, você chegou a uma obra quem nem precisava de assinatura para ser sua. Não só pelos personagens, Dona Benta, Tia Nastácia, Emília, Narizinho, Pedrinho, Visconde e Rabicó, mas pelo estilo, inconfundível. Aí volto à sua carta, volto a Guy de Maupassant, Manon Lescaut, Edmond de Gouncort, que ocuparam tanto a sua correspondência com Rangel. Longe da submissão às escolas, da escrita empolada, do palavrório
rebuscado. Viva! Viva! Viva! Em “Geografia”, assim como em tantas outras obras, você está como sempre quis: livre como um passarinho. Fácil de ler, de entender.
Afinal, o que é a escrita sem gente para ler? E o que atrai gente à escrita senão a empatia com a história, com o autor, com a narrativa? Por isso sua obra fascina: seja para crianças, seja para gente grande, como eu, você optou por ser entendido.
Escrever difícil? Não paga a pena, como diria o Jeca. Mas, cá entre nós, como isso é difícil de ser entendido.
Temos que martelar em todas as frentes. Não com esses martelos de quebrar coquinho, mas com a força dos martelos de pilão. Desliteraturizar a literatura, desburocratizar a escrita, como você, meu amigo, bem sabe. Sejamos simples. Afinal, a obra, depois de nós, não nos pertence, como você mesmo ensinou ao falar do quadro de Gleyre. De “Soir” virou “Ilusões Perdidas”, graças ao boca-a-boca do público. Você, Rangel, eu, todos, estamos naquela cena de Gleyre, todos no mesmo barco. Fica a pergunta, que você mesmo formulou: em que estado voltaremos desta nossa aventura de arte pelos mares da vida em fora? Como o velho da obra de Gleyre? Cansados, rotos? Em primeiro lugar, voltaremos? Eu não sei, mas, garanto, você não voltará o Lobatinho do tempo antigo, tão suficiente e pernóstico. Voltará queimado pelo sal, pelo vento, pelo mar, graças à bússola sem Norte da Barca de Gleyre.
O tempo é cruel. Como você disse a Rangel, nossa viagem parece estar chegando perto do fim. A quem interessa essa troca contínua de cartas? Somos só nós. Continuaremos no Além? Conseguiu encontrar Chico Xavier?
Por isso, insisto, quebrando a sisudez dessa carta, meu velho pulgão de couve, não se esqueça do seu sobretudo. Não sabemos como é o clima de lá. E Letícia reclama, dia sim, dia não, que aquele urso de lã cinzento ocupa muito espaço no armário. Nem que nevasse no Vale do Paraíba por anos e anos eu poderia usar na rua um coberto de mangas como aquele. Aproveito e mando, de contrapeso, meu exemplar de “Urupês” para você autografar. Apesar de velhinho, afinal, é de 44, ainda vai bem conservado, fora uma pontinha da capa, roída pelos dentinhos do Felipe, anos e anos atrás. Devolva. Ou fique: pego aí quando a saudade apertar. Cuidado, pode ser em breve. Não: achei data melhor! Depois de setembro, nas primeiras chuvas entre primavera e verão, quando as tanajuras começam a voar. Aproveito e levo para você uma lata do nosso “caviar”. Vai lamber os beiços.
Chego afinal ao fim desta carta. Vai à máquina. À lápis, sei bem, seria ruim para você ler por causa da perturbação na vista e pela minha letra, que é péssima. Foi, enfim, ao médico? Vá. Melhoras.
Mande notícias, sempre. Do lado de cá, lembro de você todos os dias. Da varanda de casa, de frente para a Mantiqueira, vejo a copa das árvores do casarão onde você nasceu, hoje transformado em Sítio do Pica-pau Amarelo. Uma mancha verde viva no meio de um mar de telhados, pelo vão dos prédios. Mas, confesso, envergonhado, eu mesmo não vou lá há anos, agora que os meninos cresceram e os voos siderais na mata ficaram cada vez mais raros. É da vida, meu caro amigo. No
embalo dessa expressão, e como seu Correio andou arisco, termino em ritmo de folguedo: Letícia manda um beijo para os seus; um beijo na família, na dona Purezinha e nas crianças; Guilhermo aproveita pra também mandar lembranças; pra todo pessoal, adeus!
Hélcio

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