Folia do Divino

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Por Maria Thereza Ramos Marcondes

Retirado do livro Tempo e Memória – aspectos de uma comunidade rural e de uma família paulista


Nos meus tempos de criança, vi muitas vezes chegas à fazenda a “Folia do Divino”. A finalidade das “Folias” era angariar esmolas para a festa do Divino, que seria na cidade, com o tradicional “afogado”, distribuído ao povo.

Uma “Folia do Divino” era assim constituída: um cargueireiro, quatro músicos e o alferes, que carregava a bandeira. Quando o cargueireiro chegava, com um burro carregado, trazendo as roupas e demais pertences dos foliões, meu tio já avisava para preparar comida e camas. Mais tarde chegavam cinco cavaleiros, sendo dois com violas, um com a caixa que vinha tocando pelo caminho, e outro com o triângulo. O alferes vinha à frente, com a bandeira vermelha presa a um mastro, tendo ao centro uma pintura a óleo representando o Divino Espírito Santo. No topo do mastro, dois arcos entrelaçados bem enfeitados de galões dourados, com uma pombinha de bronze no centro. O Espírito Santo é representado por uma pombinha porque esta é o único ser vivente que não tem fel, portanto, não destila o mal, na crença dos caboclos. Diversas fitas, de várias cores, amarradas ao pau da bandeira, representavam promessas feitas e graças alcançadas. Quando a Folia do Divino chegava, era uma festa. Depois do jantar, eles se reuiniam na sala para cantar ao som de seus instrumentos. Os músicos eram assim distribuídos: o “Mestre” tocava viola, o “Contra-mestre”, também viola, o “Caixa” tocava caixa ou tambor e o “Tiple”, o triângulo. A única diferença entre os músicos de uma Folia de Reis e uma Folia do Divino, era que numa o Tiple tocava a pandeiro e na outra o triângulo.

Oração entre bandeira do Divino (Foto: Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

No dia seguinte, o cargueireiro saía bem cedo, enquanto os foliões recolhiam as esmolas pelo bairro. Em cada casa que chegavam, o dono vinha recebê-los e pegava a bandeira, levava-a para dentro, e todos da família vinham beijá-la. Depois da esmola, os foliões cantavam agradecendo e iam para outra casa. à noite, chegavam a outro “pouso”, onde o cargueireiro já os estava esperando. Recebiam esmolas em dinheiro ou em porcos, garrotes, cabritos, galinhas e mantimentos, que reverteriam em benefício da festa. Já tinham os lugares certos para os pousos. A Fazenda São Joaquim era um deles.

Bandeiras do Divino (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

Depois da queda do café, acabaram-se as Folias do Divino, e passou a sair um homem só, carregando a bandeira e apanhando as esmolas. Mais tarde, até mesmo isso foi proibido pels igreja, porque estava havendo exploração, e o “afogado” passou a ser fornecido pelo festeiro de cada ano.

O “afogado”, era feito da carne de um ou mais garrotes, conforme as posses do festeiro e servido ao povo. O lugar escolhido para este fim quase sempre era o mercado. Cozinhavam a carne em enormes tachos de cobre. Temperavam muito bem e faziam um refogado que os caboclos chamavam de “afogado” ou simplesmente “fogado”. Depois de bem cozido, colocavam farinha de mandioca no prato e despejavam em cima pedaços de carne e bastante caldo fervendo, formando um pirão, que o povo apreciava muito. No dia da festa do Divino, os caboclos vinham à cidade com a finalidade de comer o tradicional “AFOGADO”.


 Lygia Fumagalli Ambrogi, profª. Maria Morgado de Abreu e Maria Thereza Ramos Marcondes. (Acervo Maria Morgado de Abreu)

Em “Tempo e Memória”, Maria Thereza Ramos Marcondes narra a sua infância e juventude vividas na Fazenda de São Joaquim, no bairro do Macuco, zona rural de Taubaté, entre 1917 e 1933. A autora foi testemunha das mudanças econômicas e sociais impostas pela primeira Guerra Mundial, a crise do Café e as revoluções de 24 e 32.

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