Entre bruxas e sacis

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No mundo globalizado, ridículo não é acreditar no saci e em tudo o que ele expressa. Lamentável é se fantasiar de bruxa

por  Marcia Camargos e Vladimir Saccheta* 

Para quem ainda não sabe, 31 de outubro é o Dia do Saci, oficialmente instituído em São Paulo nos âmbitos municipal e estadual. A ideia da sua criação partiu do grupo que em 2003 fundou a Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci) para resgatar nossos mitos e difundir o folclore. E a escolha do 31 de outubro não ocorreu por acaso. Numa estratégia para confrontar o Dia das Bruxas, que tem ocupado com força crescente espaços do imaginário, pretende sensibilizar pais e educadores sobre a necessidade de (re)descobrirmos as tradições populares, oferecendo às crianças e jovens alternativas lúdicas e divertidas.

Obra de Menotti del Picchia na mostra “Saci Pula na Aldeia Alta”
Obra de Menotti del Picchia na mostra “Saci Pula na Aldeia Alta”

Símbolo de resistência aos estrangeirismos, o saci congrega elementos multirraciais que configuram o povo brasileiro. Nascido tupi-guarani há 200 anos na zona fronteiriça com o Paraguai, incorporou feições africanas e um pito de preto velho no contato com os escravos. E, se perdeu uma perna para representar o ser humano mutilado pela violência do cativeiro, ganhou o piléu vermelho, emblema da liberdade na Roma antiga -que se converteria no barrete frígio adotado pelos republicanos após a Revolução Francesa de 1789.
Já o Halloween tem origem nos rituais do norte da Europa que celebravam o final das colheitas, antecedendo um longo período de inverno, quando os celtas invocavam seus ancestrais e homenageavam os mortos. Com o tempo, a Igreja Católica absorveu o festival pagão, convertendo-o em Dia de Todos os Santos (All Hallows” Eve), seguido por Finados. Restrito à cultura anglo-saxônica, o Halloween ganhou popularidade no século 19 com a imigração irlandesa para os EUA e começou a ser comemorado no Brasil há cerca de 20 anos, principalmente nas escolas de inglês. Logo tomou os colégios particulares, a rede de ensino pública e as lojas, que passaram a suprir um mercado ávido por produtos e modismos importados.
Esse hábito de “macaquear” o que vem de fora foi detectado por Monteiro Lobato já nas primeiras décadas do século 20, quando Paris se impunha como modelo. Em artigos inflamados, o escritor não se cansava de denunciar o desenraizamento cultural do país, chamando a atenção para a estatuária de ninfas, faunos e anõezinhos nibelúngicos nos parques públicos como o Jardim da Luz, no centro da capital paulista, em lugar de boitatás, iaras ou sacis.
Ciente da importância do saci como portador de múltiplas significações, Monteiro Lobato realizou em 1917 uma pesquisa para estabelecer os contornos antropológicos do “insigne perneta”. As conclusões foram lançadas em livro na fase mais cruenta da Guerra Mundial que assolava a Europa, paradigma de civilização aos olhos da elite intelectual da época. Contrapondo à barbárie do conflito um personagem negro, travesso e de uma perna só, “O Saci Pererê: Resultado de um Inquérito” vinha, segundo Monteiro Lobato, despertar consciências adormecidas. Assim como o Jeca Tatu, síntese de um heroísmo silencioso que morre, mas não adere, o saci seria revelador da alma de nossa terra e da nossa gente.

Exposição “Saci Pula na Aldeia Alta”
Exposição “Saci Pula na Aldeia Alta”

Nunca é demais salientar que referências mitológicas ajudam a firmar a identidade de uma nação. Contribuem para costurar a memória coletiva, reforçar os liames do tecido social, mostrando que fazemos parte de um todo, que temos uma história em comum.
Na medida em que imitamos efemérides de outras culturas de maneira simplória, nos tornamos vulneráveis. Não se trata aqui de endossar posturas xenófobas, mas sim de reivindicar uma troca de mão dupla, que inclui a possibilidade de povoar com sacis o Central Park de Nova Iorque e o Hyde Park de Londres. E, a exemplo de Oswald de Andrade, promover um grande ritual antropofágico de deglutição das abóboras, que traduzem o que há de pior na geopolítica do novo milênio.
No mundo globalizado, ridículo não é acreditar no saci e em tudo o que ele expressa. Lamentável mesmo é se fantasiar de bruxa, em uma atitude de submissão ao colonialismo enlatado, sedimentando o que Silvio Romero dizia se tratar de nosso maior mal: pretender ser o que não somos, trazendo, em contrapartida, o desconhecimento de nós mesmos.

Marcia Camargos Vladimir Sacchetta são biógrafos de Monteiro Lobato e fundadores da Sosaci (Sociedade dos Observadores de Saci). 

Publicado originalmente na Folha de São Paulo

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