Minhas Memórias de Livros

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Por Rachel Duarte Abdala

 

A formação de um hábito, como o da leitura, é baseada em relações de influência, acredito eu. Desde muito cedo, convivi com pessoas que cultivavam esse hábito, esse gosto, e que além de ler muito nutriam grande prazer nesta atividade. Meus pais são professores.

Minhas primeiras lembranças de livros, agora que comecei  a  pensar no assunto, são exatamente desta visão: meu pai lendo. Minha casa sempre teve muitos livros, várias estantes repletas de livros dos mais diversos assuntos. Quando entrei na escola nunca precisei ir a bibliotecas, pois dispunha de todos os livros dos quais precisava.

Há uma fotografia que meu pai tirou sem que eu percebesse, enquanto eu lia sentada displicentemente e muito concentrada. Essa é uma imagem que ficou do meu início de contato com o mundo da leitura.

Meu pai leu toda a coleção de Monteiro Lobato, para mim e os meus três irmãos menores. Lia? Bem, pelo menos eu pensava que sim. Mais tarde, bem mais tarde, descobri, que na verdade ele contava do jeito dele as histórias, do jeito que ele entendia. Descobri isso, porque na época em que se davam esses “serões”, me lembro que fiquei muito orgulhosa e impressionada porque o meu pai havia “lido” o maior livro em menos tempo. Era o VIII volume e era sobre as invenções do mundo, e como não fazia sentido ler isso para crianças com idade entre sete e dois anos, ele resumiu tudo e mostrou as figuras. Ainda sobre esses livros, uma de minhas lembranças mais fortes, é a de que ouvíamos suas leituras todos os dias e certa vez, durante as férias, fomos viajar e esquecemos o livro. Meu pai parou o carro e perguntou se deveríamos voltar. Confesso de que não me recordo das histórias, mas deduzo que como esse fato ficou muito marcado em minha memória, ouvi-las deveria ser um grande prazer.

memorias

Depois veio a época dos “infanto juvenis”, adaptações dos grandes clássicos. Tínhamos a coleção em casa. Antes de iniciar a leitura de um novo volume eu queria saber se meu pai já havia lido, porque eu queria poder discutir minha leitura com ele. Minha irmã, um ano mais nova que eu, também lia, mas nunca o mesmo livro ao mesmo tempo. Da coleção, um livro eu nunca li, pois meu pai não havia lido e ainda que ele insistisse para que eu o lesse e lhe contasse a história, não me persuadi. O primeiro livro que li da coleção foi  A volta ao mundo em oitenta dias de Júlio Verne. E foi ai que começou uma mania que persistiu por muito tempo: após ler um livro com linguagem não coloquial eu passava alguns dias falando segundo esse padrão, o que chegava a irritar meus irmãos e fazia meus pais rirem. Eu me transportava a um outro tempo.

Detalhe do poster de divulgação do filme A volta ao mundo em 80 dias, de Michael Anderson. (não é o livro, mas serve de ilustração.)

Ainda hoje, isso acontece. Não no sentido de florear a linguagem mas no de me sentir parte da história. Eu realmente me reporto ao tempo e à história do livro. Os personagens realmente criam vida, e passo muito tempo pensando neles mesmo depois de acabada a leitura. Aliás, essa é uma outra característica que adquiri: minha leitura não é fragmentada, leio até o fim, sem parar, um livro que me chame muito a atenção.

Hoje, leio ao mesmo tempo vários livros, por causa da leitura extensiva que é necessária na faculdade, mas ainda conservo esse hábito de me “apegar” a determinado livro, em detrimento dos demais.

Uma leitura que foi muito marcante foi a do livro Ciranda de pedra de Ligia Fagundes Telles. Vi o livro sobre a mesa, meu pai estava lendo, e o folheei. Tinha uns quinze talvez dezesseis anos. Comecei a ler alguns trechos enquanto folheava e sem que percebesse comecei a ler o livro. Chorei muito. Era um livro forte, talvez se eu o relesse hoje não tivesse a mesma impressão, mas essa foi a lembrança que me ficou. Sempre chorei lendo. Acho isso curioso. Não me sensibilizo muito facilmente com filmes mas os livros sim, os livros têm a capacidade de me sensibilizar. Atribuo isso ao fato de que na leitura a imaginação se liberta.

Imagem: blog.sindiclubesp.com.br/

Leio antes de dormir. De preferência livros ditos “não teóricos”, romances clássicos. Por vezes, adio o sono, o que acontece com freqüência, quando a leitura me desperta grande interesse e me encontro num daqueles momentos nos quais literalmente não consigo me separar do livro enquanto a leitura não acaba. Vejo esses momentos como mágicos. Estabeleço uma relação de afetividade com a história e consequentemente, com o livro.

A leitura desempenhou e desempenha um grande papel na minha vida. Penso que eu me relaciono com o mundo através dela.

 

[box style=’info’] Rachel Duarte Abdala
rachel_thumbÉ professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté, doutora em História na Universidade de São Paulo.

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