Ensaio sobre a Cegueira – 3: Entornos

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Texto de Paulo Ernesto Marques Silva (do Movimento Preserva Taubaté)

(imagem: fundart.com.br)

Um bem é tombado porque possui qualidades e características especiais que o credenciaram para tanto.

Essas características especiais, justamente por assim serem, nem sempre são amplamente conhecidas e reconhecidas pela população e podem não ser um consenso.

Por exemplo, são tombados e constam expressamente de nossa Constituição Federal os sítios quilombolas nos seguintes termos: 

“ ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos …”.

Estes sítios com certeza são desconhecidos pela população média, mas é inegável o valor inestimável que tiveram na resistência ao descalabro da escravidão e na formação de nossa etnia.

Estava eu recentemente em Ubatuba no feriado de finados e visitando aquele maravilhoso Sobradão do Porto – em lamentável estado de degradação, e presenciei uma roda onde se tocavam alguns instrumentos e discutiam-se algumas questões.

Pois bem, descobri que se tratava de uma das atividades do 1º Encontro do Fandango Caiçara – realizado em Ubatuba.

Saibam vocês (eu não sabia) que o Fandango Caiçara é, segundo o IPHAN,

“… uma expressão musical-coreográfica-poética e festiva, cuja área de ocorrência abrange o litoral sul do estado de São Paulo e o litoral norte do estado do Paraná…”.

É também o mais novo bem imaterial tombado pelo IPHAN. Parece que a definição do IPHAN merece reparo, pois o Fandango Caiçara ocorre também em Ubatuba (Litoral Norte de São Paulo) e até em Parati (Litoral Sul do Rio de Janeiro), conforme a discussão que assisti.

sobradao

Os bens materiais são de mais fácil compreensão e entendimento dos seus valores históricos, artísticos e arquitetônicos, acredito eu.

Alguns são unanimidade nacional e até internacional, como o Cristo Redentor do Rio de Janeiro, as cidades históricas de Minas Gerais, a Cidade de Olinda, o Pelourinho e as Igrejas de Salvador, isto para ficar só no Brasil.

Vemos então que escolher aquilo que deve, que merece ou não, ser tombado é assunto para especialistas, tendo ouvido o povão.

Para tanto, os órgãos tombadores devem ter um conselho que atenda e entenda os diferentes valores culturais do povo que representa. Federal, estadual ou municipal. Deve ser condição inquestionável que este conselho tenha caráter deliberativo (tem que ser obedecido) e independente do poder público.

Isto tem que acontecer para que não tenha “rabo preso” com nenhum lado dos interesses que cercam o tombamento de um bem. Para conhecimento, aqui em Taubaté, o órgão similar é o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Urbanístico, Arqueológico e Arquitetônico que é de caráter consultivo e composto por sete pessoas todas elas indicadas direta (4 funcionários da Prefeitura) ou indiretamente (3 funcionários da Unitau) pelo poder público, ou seja, pelo próprio Prefeito Municipal.

Ora, nem os mais crédulos podem sonhar com alguma autonomia.

Um bem tombado torna-se protegido diretamente porque não pode mais ser demolido, em nenhuma hipótese. Por lei devem ser mantidos pelos seus proprietários ou pelo órgão tombador (quando for o caso) sendo que toda intervenção no bem tombado, desde uma restauração ou que implique em qualquer modificação, deve ser precedida de aprovação de projeto pertinente aprovado pelo órgão de defesa do patrimônio competente. O bem tombado também deve ter proteção e regulamentação quanto ao seu uso e permissão de acesso público.

Uma das grandes questões é sobre a proteção ou restrição de uso do entorno do bem tombado. Existem diferentes normas e leis que regem esta questão e causam uma polêmica enorme. O CONDHEPHAAT, até 2003, estabelecia em lei que num raio de 300 m do bem tombado não poderia haver construção de impacto que influísse na fruição do bem, ou seja, na sua contemplação. Seria uma forma de que o bem tombado figuraria como a peça principal daquela microrregião. Seria como uma noiva em seu casamento que não deveria ser ofuscada.

Concentração de vendedores ambulantes impede a contemplação da Igreja do Pilar, maior patrimônio histórico da cidade
Concentração de vendedores ambulantes impede a contemplação da Igreja do Pilar,
um dos maiores patrimônios históricos da cidade

A partir de 2003 a Lei mudou e passou-se a adotar que cada caso seria estudado isoladamente e a restrição de construções de impacto passou a ser totalmente subjetiva. Aliás, a definição de construção de impacto já é subjetiva em si própria. Ou não é de impacto a construção daquele criminoso prédio do Torra-Torra que oculta quase que completamente a Capela do Pilar (Tombada pelo IPHAN, pelo Condhephaat e pelo Município) ?!

Aqui em Taubaté até 2010 a proteção do entorno do bem tombado pelo município, também previa um raio de proteção de 300 m que constava de nosso Plano Diretor, aprovado após as audiências públicas, que restringia às chamadas construções de impactos, que aliás tinham suas características definidas na própria lei, reduzindo sua subjetividade.

Edifício Felix Guisard, o famoso prédio da CTI, se esconde atrás de um prédio residencial. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Edifício Felix Guisard, o famoso prédio da CTI, se esconde atrás de um prédio residencial. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

Em uma sessão ordinária da Câmara Municipal, o artigo foi revogado sem qualquer consulta à população. Hoje, o entorno protegido do bem tombado, em caráter municipal, restringe-se à duas vezes a medida da frente do terreno e uma vez a medida de sua profundidade. Continuaremos.

 

Veja também:

Ensaio sobre a cegueira 1;

Ensaio sobre a cegueira 2 – Tombamento;

 

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pauloernesto

 

 

Paulo Ernesto Marques Silva reside em Taubaté desde 1957. É mestre em Ciências Ambientais e co-fundador do Movimento Preserva Taubaté.

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