DISFARCES

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Texto de Renato Teixeira publicado na edição 712 do Jornal Contato

Tudo é um disfarce.

Até o que vem escrito a seguir é um disfarce.

Quando escrevo estou construindo um formato para que meu pensamento possa se comunicar, não como ele é quando concebido – porque isso vem de uma região anterior ao cérebro que ainda não nos foi revelada e sim através de um disfarce apropriado para a ocasião; o disfarce das palavras escritas, um dos mais praticados.

Quando chega ao território da compreensão alheia, o meu pensamento já se transformou numa dessas estrelas que vemos, mas não existem mais.

Nada é o que pensamos que seja. Precisamos sempre criar disfarces apropriados: já que não dá pra ir todo mundo pra guerra, a gente escolhe uns humanos determinados, os disfarçamos de soldados e generais e os mandamos enfrentar seus correlatos, que defendem a bandeira adversária disfarçados de inimigos. A guerra é sempre uma representação aterrorizante de uma carnificina que poderia ter sido de proporções ainda maiores se não tivéssemos mandado à luta uma representação nossa, tipo “todos nós disfarçados de alguns”.Um disfarce cruel sem dúvidas, mas generoso com aqueles que foram poupados e não tiveram que se ensanguentar nos campos de batalha.

Vejam agora as canções.

De onde vieram as melodias?…

como surgiu essa ideia?

As melodias surgiram do cantar dos pássaros, da chuva caindo, das ondas do mar se derramando nas praias, do correr das águas nas vazantes, das cachoeiras que gritam… vieram do vento farfalhando  nas folhas, vieram dos raios e dos trovões.

As canções são disfarces sonoramente organizados pelos humanos com os quais os sons da natureza se apresentam aos nossos ouvidos.

Mas, de onde veio tudo isso, o que antecede tudo isso, juro que não sei…

Um dos disfarces mais emblemáticos que conheço é o disfarce da poesia que possui facas invisíveis capazes de cortar a alma em pedacinhos, de tão perfeita que é sua maneira de se disfarçar.

A palavra, o verbo, a frase, o sinônimo, são ferramentas de uma outra força maior que precisou se apresentar assim desse jeito, com palavras, para que pudesse se fazer entender pelos nossos sentimentos.

Todos nascemos filhos e, mais à frente, nos tornamos pais. É um disfarce elaborado no sentido de se buscar a lógica, na sucessão familiar. Sabemos como isso se dá fisicamente e até entendemos muito bem o processo.

Só não sabemos ainda de onde vem essa fórmula invisível que precede a criação de um outro ser. Por enquanto só sabemos que nada pode ser mais forte do que o fator consanguíneo, uma condição que  se impõe pelos poderes da natureza  através de outros disfarces que chamamos de tios, primos, irmãos, etc.

Alô, povo da fé. Regozijai-vos! O Deus que conhecemos também é um belo disfarce de um Deus maior ainda, generoso e sutil, que entre nós se disfarça de múltiplas maneiras: uma hora é semente, outra hora é fruto, outra hora é flor, outra
hora é música e assim por diante.

A função dessa “Força Generosa que Vem de Cima” é possibilitar que todas as coisas aconteçam, simplesmente.

Cito o exemplo do Papa, qualquer Papa: é um homem como outro qualquer, mas ocupa uma função onde precisa estar paramentado, disfarçando-se, assim, de outro homem que, por ser muito importante, precisa se vestir de um jeito diferente para ser identificado com sua missão. Se não fosse assim, os reis não precisariam usar coroas.

Papas, reis, padres, mães de santo, rabinos, etc. são os disfarces da energia que movimenta as nossas crenças e precisa se expressar de uma maneira fácil de ser compreendida.

Deslumbrante e bela é a energia que move todas as coisas que a existência nos proporciona sem nos dar a opção de saber verdadeiramente quem é ela, como se dá e de onde vem, trazendo e movimentando toda essa grandeza de poder por trás de todos os disfarces com os quais as coisas se apresentam.

Pra mim, essas reflexões malucas com as quais as vezes me divirto criam a certeza -mais realista- de que, se hoje ainda não conseguimos implantar paz na terra é uma questão de tempo, pois existe, sim, uma força benigna que nos move.

Na beira da estrada um velho caipira pitava um cachimbinho de barro. Cheguei bem devagar e fui puxando assunto, o que não é difícil de se conseguir.

Não demorou e o papo já rolava leve e solto. Era um caipirão italiano de nome Fredo, mas o sotaque era esse mesmo que a gente conhece.

Então, começou a questionar a bíblia energicamente e não foram poucas suas condenações.

Não aceitava, por exemplo, nem o céu nem o inferno porque, devido ao convívio com a natureza e os anos de vida, percebi que ele também intuíra o onipresente disfarce.

E já sabia dimensioná-la…

A sombra refrescante e a conversa, como induzida pela força da natureza à nossa volta, foi avançando por caminhos elevados espiritualmente, até que depois de um silêncio passarinhado, grilado e farfalhado, Fredo me disse:
– Eu sei quando vou morrer!
-Quando? Perguntei ansioso.
– Um dia! Me respondeu sereno.

Me senti como aquela flor que a gente assopra e flutua tão delicadamente, que deixa contente nossos corações.

Só sei que nada se …

 

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