NÃO SE ESCREVE MAIS COMO ANTIGAMENTE… AINDA BEM!

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Texto de Vinícius Amaral

Vamos falar sobre Literatura hoje. Sobre Literatura e História, para ser mais exato. Eis aí uma relação das mais antigas. Com efeito, a História enquanto ciência aproximou-se de um gênero literário, o romance, produzindo um subgênero obviamente classificado como romance histórico. Mas esse é apenas uma fração do rico diálogo que essas duas artes mantém entre si.

Benedeto Croce.
Benedeto Croce.

Em outros tempos, chamar a História de arte seria motivo para ser excomungado pela comunidade de historiadores. Já no século XIX se comparava a História com a Literatura, mas ainda se duvidada do conteúdo artístico da primeira. Quando o positivismo institui a História como disciplina, as dúvidas aumentam. Mas muitos historiadores, como Benedetto Croce e Marc Bloch, não negavam esse veio artístico da ciência que tanto amavam.

Hoje, depois de tantas transformações, o fosso entre arte e ciência foi dissolvido. Ora, a física quântica e as vanguardas artísticas minaram essa dicotomia, questionando a objetividade da ciência e os cânones da “Grande Arte”. Hayden White acredita que a História não acompanhou essa mudança, aludindo sempre a um estilo de ciência e de arte do século retrasado – a ciência imparcial e a arte beletrista.

Pierre Bourdieu em seu artigo clássico sobre a Ilusão Biográfica nos aponta para o pioneirismo dos escritores modernos quanto á questões narrativas. O sociólogo argelino parece concordar em um aspecto com o historiador canadense: a História tem muito o que aprender com as artes, principalmente com a Literatura.

Detalhe do livro "Contos da História do Brasil", de Viriato Correia.
Detalhe do livro “Contos da História do Brasil”, de Viriato Correia.

Walter Benjamin reconhecera que havia algo que escapava á Literatura e á História. Segundo ele, a experiência do vivido não conseguia se traduzir integralmente no campo das letras porque havia nela sempre um aspecto indizível. Geralmente, aspecto esse relacionado a uma situação traumática. O exemplo maior para Benjamin, que não viveu para ver a Alemanha livre do nazismo, eram os soldados que voltaram mudos da Primeira Guerra Mundial. Estes soldados nada diziam sobre o que viram, mas se percebia em seus olhos o horror da guerra. Esse horror não conseguia encontrar equivalência nas narrativas.

Dizer o indizível é uma situação inerente á narrativa moderna, mas que, ao menos para Benjamin, foi melhor resolvida pela Literatura que pela História. Como? O filósofo alemão nos responde citando os nomes de Marcel Proust e Franz Kafka, escritores que driblaram a forma convencional de se contar uma história e fizeram do seu tema a própria incapacidade de dizer o indizível, no caso em questão, de ligar o passado ao presente.

Na História, o indizível não é mais execrável. Com efeito, nos últimos anos se procura contemplar esse aspecto da experiência humana para além das explicações mecânicas e reducionistas. Mas estudos que se comprometam a produzir narrativas sobre ele são escassos. Ainda são nas pesquisas sobre eventos traumáticos como a memória dos sobreviventes do Holocausto que a História mais se aproxima desse difícil exercício.

Walter Benjamin
Walter Benjamin

Beatriz Sarlo nos fala de uma ambiguidade radical da Literatura: ela nomeia os objetos, mas, a um só tempo, também os desfigura, os torna duvidosos. Os sentimentos e os truques narrativos caem como um manto sobre estes objetos e mesmo sobre os eventos, transformando-os em algo mais. Sarlo encontra em versos fios narrativos que transmitem um sentimento próprio sobre um momento próprio. Poemas sobre homens que arrombam portas ou testemunhos que apodrecem na boca dizem respeito à múltiplas situações, mas podem ser relatos literários sobre um momento em específico da Argentina como a ditadura militar.

Não é a toa que a crítica portenha insista em ver nas obras literárias e mesmo nos livros históricos uma espécie de autobiografia coletiva. A Literatura não é um jogo restrito a meia dúzia de iluminados – embora a cada dia proliferem certos tipos de obras que elevam a meta-narrativa a tal ponto que acabam se tornando no final das contas um fetiche para escritores – , por mais que o analfabetismo ainda grasse pelo mundo, ela encontra maneiras de se infiltrar na vida das pessoas.

O holocausto é um dos temas mais comuns na literatura histórica
O holocausto é um dos temas mais comuns na literatura histórica.

Ítalo Calvino dizia em uma palestra que preferia dez vezes o mundo escrito, pela sua racionalidade e pelo controle, mas que era obrigado, como escritor, a permanecer no mundo não-escrito pois esse é o verdadeiro alimento das letras. A relação da Literatura com a realidade, vai muito além da mimésis – conceitozinho espinhoso, mas que a grosso modo se refere á capacidade de representar a realidade que as artes possuem. Essa é uma relação pontuada por lacunas e continuidades, que são discutidas atualmente quase á exaustão. Porém, a História começa a entrar nesse debate relativamente há pouco tempo. Sua relação com a realidade também passa pela linguagem e a construção de sua narrativa é tão importante quanto a coerência teórico-metodológica. Sim, isso torna nosso ofício muito mais oneroso, afinal a linguagem hoje é tão complexa que pode levar muitos a lamentar que não se escreva mais como antigamente. Ora, a escrita é dinâmica. E hoje ela acompanha a tendência de nossa sociedade – poderíamos aqui falar de outros suportes que demandam uma cultura escrita diversa, como as redes sociais – o que a torna mais rica, mais prenhe de significados. Ao bom historiador, uma linguagem complexa não é um martírio, mas um ótimo (e prazeroso) desafio.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

 

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