As eleições do passado

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Texto retirado do livro “Conversando com a saudade” de Emílio Amadei Beringhs

Ao ensejo da realização das eleições municipais, para a escolha dos representantes do povo no próximo quatriênio-que correram na melhor ordem, com extraordinário comparecimento de eleitores,lembramo-nos de recordar, para os contemporâneos, como eram as eleições antigas, no tempo do voto descoberto.

Fomos buscar em nosso arquivo um comentário escrito em 1947, para o programa “Ritmos da Saudade”, que a Rádio Difusora mantinha da época. Naquele ano os brasileiros experimentavam, quase a medo, uma nova etapa política. Vínhamos de uma era de exceção, um regime discricionário, implantado pela revolução de 1930 que à guisa de dar nova forma democrática a representação pública, acabou por sufocá-la completamente.

Sem querer criticar ninguém, porque reconhecemos nos homens de nosso passado político, pelo menos, aquela consciência do dever e do respeito integral à nacionalidade., apenas procuraremos, dentro desta descrição, contar algo muito interessante. Assim, toda e qualquer referência feita no transcorrer do nosso comentário, visa apenas contar como decorriam as memoráveis eleições da velha guarda política, o que, até certo ponto, poderá parecer muito estranha aos moços eleitores de hoje.

Dizíamos, então, naquele escrito de 1947: “Quinze anos de ditadura e mais cinco ou seis, ou mesmo mais, da primeira infância de cada um, perfazem uma soma de mais de vinte ano. Tal foi o tempo decorrido em que os brasileiros estiveram ausentes das repartições arrecadadoras de votos. Houve, é bem verdade, um hiato, quando em 1934, se esboçou um pleito para a recondução do Brasil aos seus quadros representativos. Mas foi só. Em 1937 tudo foi banido de novo, com a implantação do chamado “Estado Novo”. Ao tempo da nossa referência, isto é, 1930, o partido chamado “do Governo”era praticamente para benefício do regime. Embora de menor parte, sem qualquer possibilidade de êxito, este arremedo de partido obrigava o outro, o do governo, a botar as barbas de molho. O voto, aquele tempo, era exercido a descoberto. Sabem o que isso significava? Vamos contá-lo: o voto a descoberto era entendido como voto claro, em que o eleitor se declarava pertencer a esta ou aquela facção. A coisa decorria da seguinte forma: a sala eleitoral era a mesma, isto é, idêntica a que se usa ainda hoje. Não continha, no entanto, a cabine indevassável, por desnecessária. A mesa estavam os mesários e fiscais de candidatos. Chegava o eleitor. De um dos cabos eleitorais, postados a porta da seção, recebia uma cédula impressa com o nome ou os nomes dos candidatos. Ora, se recebia do cabo eleitoral “A”, era evidente que votaria contra os candidatos do cabo eleitoral “B”. Este então anotava na sua lista de eleitores, em seguida ao nome do eleitor, uma letra “C”, que significava “CONTRA”. Era um “C” fatídico ou poderia ter conseqüências futuras, caso o atrevido eleitor fosse funcionário público ou dependesse do poder público em qualquer circunstância. Como recíproca, o cabo eleitoral favorecido, com a retirada da cédula, escrevia um “N”, que queria dizer obviamente “NOSSO”.

Isso ocorria durante as eleições. Antes, todavia, outras providencias eram tomadas, com um vasto programa cuidadosamente preparada: a casa da “bóia”, como era chamada a casa que fornecia alimentação aos eleitores de fora, que consistia, quase sempre num “afogado”, que causava mais prejuízos que benefícios para a saúde. Depois os eleitores iam até a casa do Coronel ou do Doutor Fulano, onde recebia “ordem” para comprar um par de borzeguins ringidores, que causavam verdadeiras destruições em pés desacostumados com seu uso. Um chapéu de palha e alguns níqueis completavam a “compra” do voto, cujo o dono nunca se preocupava em saber quem pagaria aquilo tudo. Era o tempo do Coronelismo. O “Coronel” disse. Estava acabado.

O voto de cabresto no início do século XX. Ilustração de Alfredo Storni

Voltando a sala das eleições, diremos que muitos eleitores não compareciam. Outros, já falecidos, continuavam a enfeitar a relação. Terminada a coleta de votos, os mesários que pertenciam ao clã do governo, enchiam, ou melhor, assinavam os nomes que faltaram, atirando à urna tantos votos quantos eram faltantes. Coisa curiosa: havia eleições em que o número de votantes era maior que o das listas. As urnas, depois da cena patriótica da eleição, eram conduzidas a casa do chefe do partido, onde se procediam as apurações. A farsa estava completa. O partido oficial havia conquistado uma vitória significativa.

A punição dos que votavam contra, ficava para daí a pouco. E não falhava. Muitas vezes eram castigados até a terceira geração. Se eram empregados de amigos, estes os despediam; se negociantes, seus impostos eram aumentados e a fiscalização atordoava o “faltoso”; se funcionário, comeria o pão que o diabo amassou. Triste espetáculo esse.

Havia ainda, a possibilidade de arruaças, cacetadas, bofetões, e até tiros, se alguém ousasse ameaçar o partido de cima. Arruaceiros surgiam como por encanto, sobraçando fueiros de carros, cacetes e tudo mais, distribuindo pancadaria a torto e a direito. Aí tudo desaparecia: mesários, urnas, cédulas. Um corre-que-corre que nunca acabava.

A diferença existente hoje peca apenas por uma circunstância: antigamente o partido oficial escolhia a dedo os que seriam candidatos. Foi quando o Brasil alcançou maior projeção internacional, com homens como Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves, Júlio Prestes, Washington Luis, só para citar alguns. Hoje tudo é diferente: qualquer cidadão, mesmo que despreparado, pode disputar um cargo eletivo, tendo igual chance de vencer.

Este é, sem dúvida, um comentário visando a uma época que, francamente, não deixou saudades. As velhas eleições continham, em si mesmas, erros gravíssimos que sugeriram a Revolução de 30, que foi conseqüência de outras. Uma velha experiência que, felizmente, foi banida da vida cívica do Brasil. Taubaté, outubro de 1963.

 

 Texto retirado do livro Conversando com a saudade de Emílio Amadei Beringhs. 

 

Emílio Amadei Beringhs

Desde menino foi funcionário da CTI. Atuou por mais de 50 anos no jornalismo taubateano, descreveu com maestria o cotidiano taubateano. Integrou o Instituto Geográfico de São Paulo. Foi um dos pioneiros do rádio amadorismo no Vale.Na radiodifusão convencional, foi responsável, junto com Alberto Guisard, pela pioneira Rádio Bandeirantes.Em 1941, foi co-fundador da Rádio Difusora de Taubaté. Foi sócio fundador do Aero-Clube de Taubaté.Em 1967, escreve o primeiro volume do obrigatório livro Conversando com a Saudade, descrito por muitos como pedaços da alma de Taubaté. É, também, de sua autoria, a bandeira de Taubaté.

 

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