FATO HISTÓRICO: O SABINO MORREU!

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Notícia terrível: o Sabino morreu!

O Sabino, chamado por alguns de Maluco, foi um conhecido filósofo em Taubaté que até pouco tempo eu duvidava da sua existência.

O conheci no Jornal de Taubaté, em 1905, em um brilhante texto assinado por Oscar Telles (clique aqui para ler). A partir dele, um mundo de questões apareceu: como ele era? O que fazia? Era um maluco mesmo? Era filósofo? Existiu? Essa última pergunta era a que mais me incomodava, e justifico: Oscar Telles é um pseudônimo. Assim sendo, será que aquela história é fictícia?

São perguntas que nunca se encerram.

Nunca fui dado a refletir sobre a mecânica do pensamento historiográfico, simplesmente porque todo historiador faz isso. Logo, me bastava ler e brincar com uma ou outra interpretação. Não discordava da maioria e, ao final, as idéias são confluentes, em uma mecânica mais ou menos assim: 1) o que é História?  (aqui se pensa se ela é uma ciência ou não e uma possível definição do termo, normalmente citando um conhecido historiador chamado Marc Bloc, que diz que a História é o estudo do homem no tempo); 2) Qual o objeto de estudo da História? (nesse momento o estudioso da História começa a se enrolar, fica entre o fato, o próprio homem, o tempo histórico, etc.); 3) por fim, o que é fato histórico? (as interpretações aqui são tão diversas quanto se possa imaginar, passam desde questões a respeito de determinismo histórico até sobre causalidade).

Sabino, publicado no Almanaque Ilustrado 1905
Sabino, publicado no Almanaque Ilustrado 1905

O Sabino me levou para esse terrível universo, que começo a pensar que seja inevitável a qualquer estudioso de História.

A primeira questão que levantei foi a respeito da autenticidade das fontes. O documento que li é cheio de “se nãos”, a começar pelo fato do autor ser um pseudônimo, alguém travestido de um personagem, jornalista, autor de muitas polêmicas na cidade (num futuro próximo falo sobre ele). E o relato se referir a um indivíduo no mínimo excêntrico.

A historiadora Emilia Viotti da Costa disse em um artigo que “uma das tarefas mais difíceis do ofício de historiador é a crítica dos testemunhos. Ao descrever e interpretar o momento que estão vivendo, os homens traçam, frequentemente, uma imagem superficial e deformada dos fatos.” O pesquisador, quando lança mão de testemunhos, independente da plataforma (se textual ou de memória), faz um jogo de interpretações que varia de acordo com o vínculo que é estabelecido com o objeto a ser estudado. Nesse momento, o exercício do historiador se dá em apresentar uma representação da realidade social. E, se cada indivíduo ou grupo se percebe como agente na representação da realidade significa que a cada um será exibida uma maneira própria de estar no mundo. Lidamos com a subjetividade, as múltiplas interpretações as várias representações. Entretanto, há uma série de códigos e “formas institucionalizadas” que singularizam e legitimam o fato.

Provar a existência do Sabino precisava de mais elementos. Eu precisava de mais fontes, e fontes mais autênticas. Aqui surge mais um problema para o estudioso de História: o que determina a autenticidade do documento? Será a origem? O material? A plataforma?

A busca por “fontes autênticas” leva à negação da representação, faz com que o fato se ensimesme, se esgote nele, pois o documento produzido é uma prova oficial da realidade.

Se assim o fosse, para quê estaríamos estudando História?

Ao mesmo tempo que isso se apresenta como um problema, comungo da ideia de L. Von Ranke de que é necessário “forçar a eliminação, tanto quanto possível, de pontos de vista pessoais que desfiguram o verdadeiro conteúdo”. Mesmo que isso se apresente como uma contradição ao que venho dito por aqui. O testemunho das fontes relacionado ao fato tende a produzir as crônicas ou a história tradicional (dos vencedores). Na linha oposta, preconizando a análise, relacionando teoria e método, reside o revisionismo.

O historiador vive um processo contínuo de criação de fatos.

“[…] o fato não constitui simplesmente uma realidade objetiva, um acontecimento existindo independentemente da consciência, mas uma realidade ‘refletida’ ou ‘tendo sido refletida’ pela consciência, de uma ou de outra maneira. O fato surge como no limite entre o sujeito e o objeto. Estabelecer um fato, significa descobrir, verificar uma realidade, a presença de um fenômeno ou um acontecimento,  a sua existência  na realidade objetiva do passado ou do presente (IVANOV, Guennadi, p. 81)

Eis o fato: O Sabino, maluco, filósofo e socialista, existiu. E Temos aí algumas outras evidências.

No Almanaque Ilustrado 1905, uma foto do personagem; em 1907, no Jornal de Taubaté, texto em homenagem ao Sabino, por ocasião da sua morte.

Jornal de Taubaté, 14 de fevereiro de 1907. Clique na imagem para ler o artigo completo
Jornal de Taubaté, 14 de fevereiro de 1907. Clique na imagem para ler o artigo completo

Honório Jovino, o então editor do jornal deu todas as descrições do personagem. Se não clicou na imagem acima (o que recomendo), faço aqui um breve resumo: era um mendigo que usava uma dentadura frouxa (que suspeitava-se ter sido encontrada por ele em qualquer lugar), muito educado, não respondia as ofensas das crianças e nem reagia quando atingido por pedras e outros objetos, sempre que recebia uma moeda ou cigarro fazia acrobacias ou recitava um fandango. Uma revelação: o Sabino se chamava, na verdade, José Maria Medeiro.

Com três documentos foi possível refazer a representação de um personagem de existência duvidosa. Fato criado: o Sabino existiu, até que se prove o contrário.

E os problemas da história também se apresentam como fatos históricos. “A história deixou aos poucos de ser uma crônica dos episódios e das ações individuais, para se converter numa história interpretativa, deixando num segundo plano a ação dos indivíduos, ressaltando o papel dos grupos sociais, e o historiador em vez de se preocupar em expor os acontecimentos numa ordem cronológica, procurou relacionar as transformações políticas com as mudanças ocorridas na estrutura econômica e social do país. Abandonou o tom emocional das primeiras crônicas colocando-se num plano mais racional e científico, procurando enquadrar os fatos conhecidos em esquemas novos” (Emilia Viotti da Costa).

Os “fatos conhecidos” correm grande risco de deixarem de ser apenas fatos históricos e passarem a ser suplantados por análises. A crônica tem o seu valor, é necessária para que se conheçam os fatos e a multiplicidade de olhares. E devo reforçar uma ideia que lancei em um outro texto: só não se estabelece uma relação emocional com o objeto de estudo quando se é um robô.

Poxa, o Sabino Morreu!

Não deixe de ler a crônica de Honório Jovino sobre a morte do Sabino Maluco.

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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
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