Escola, hinos e a casa mal assombrada

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Texto de Celio Moreira

Guardada a sete chaves na memória durante muitos anos, minha primeira escola acaba de renascer graças à recente postagem do Almanaque URUPES.

Registro, portanto, meu louvor pelo que vem fazendo a maravilhosa tríade Almanaque Urupês, Mistau e Preserva Taubaté em prol da erradicação da amnésia cultural em nossa cidade. Nunca é demais repetir: “Um país sem memória é um país sem passado.”

Lopes Chaves. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Lopes Chaves. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

Pois bem, depois de muito tempo e agora vendo a antiga foto que me transporta aos primeiros anos escolares, ainda gostaria de saber por que, de uma hora para outra, fomos transferidos do Grupo Escolar Jacques Felix, da Rua Visconde do Rio Branco para o Lopes Chaves da Pedro Costa. Sem maiores detalhes, apenas o breve comunicado à classe sobre a mudança. Estaria o rumor natural produzido pelas crianças incomodando algum influente morador da periferia? Vejam bem prá onde mandaram minha primeira Escola: Estiva! Nada contra. Provavelmente, hoje, um bairro populoso, bem organizado e merecedor das melhores escolas. Mas, porque removeram o Jacques Felix? Para nós, crianças, tudo era festa e pouco importava a brusca transferência. A ida para o Lopes Chaves, de nenhum modo estava sendo mal recebida. A escola gozava de ótimo conceito. Então, indiferentes ao sucesso do momento, obedientes e felizes, deixamos para traz a escola que nos acolhera para os primeiros ABECES e tudo continuou como dantes no quartel de Abrantes.

Membros da Senta Pua.
Membros da Senta Pua.

Vivíamos uma época em que os hinos estudantis eram entoados com muita ênfase. Concorria para isso a participação do Brasil na guerra e o apoio que os jovens emprestavam às mais variadas campanhas em favor da pátria. O entusiasmo crescia na hora de interpretar…

 “Estudantes do Brasil, tua missão é a maior missão, batalhar como soldados…”

Eram hinos maravilhosos!

Brava gente brasileira!
Longe vá temor servil
Ou ficar a pátria livre
Ou morrer pelo Brasil!

Todavia, a censura imposta pela revolução de 64 decretou o fim da execução desses hinos em todas as escolas. “Batalhar como soldados”?… Nem pensar! Isso vai subverter as crianças! Pergunto: Será que a medida ainda prevalece? Tomara que não.
Agora me detenho na foto do Grupo Escolar LOPES CHAVES e, mais que a saudade, cresce uma enorme tristeza. Oxalá, salvo engano, a imagem que vejo não seja a de um prédio em abandono, prestes a se acabar em ruínas. As carteiras, o quadro negro…  será que estão no  mesmo lugar? Quanta vontade de entrar novamente na minha sala, janela voltada pra rua, sentar numa carteira e, com os  olhos fechados, fazer minha memória voar para bem longe e, assim, poder ouvir, mais uma vez, o bonito canto do nosso orfeão e, (porque não?) sentir a mão do professor Roque me separando do conjunto  porque eu era um “taquara rachada”. Calou fundo, Senhor Diretor, pois estava sendo considerado um desafinado. Sabia que o mestre cometera um engano, que fora traído pela audição, pois naquele tempo tirava som do meu  cavaquinho num quarteto infantil que se completava com a participação de Brasil Natalino, Célio Hardt e Serginho. Cavaquinho comprado por meu pai quando estanquei para admirá-lo diante de uma vitrina na Rua Direita, em São Paulo. Pedi para voltar ao Hotel e não larguei mais do instrumento.Conseguíamos fazer sucesso quando o carnaval da cidade ganhava maior destaque na Praça Dom Epaminondas, com desfile de carros (corso) e batalhas de confetes e serpentinas. As pessoas ficavam à nossa volta para ouvir.

Nesta mesma época, fomos convidados para participar da festa de aniversário de um pirralho, como a gente, em Guaratinguetá. Todas as despesas pagas, mais um dinheirinho por fora. Cantamos todo o repertório em nossa apresentação e quando a festa acabou já era noite e tivemos que pernoitar no casarão. Os donos eram espíritas e os quartos, em sua maioria, estavam reservados às pessoas que participariam de uma sessão especial naquela noite. E agora, onde a gente vai dormir? Não se preocupem- diz a empregada em tom grave- o quarto de vocês já está arrumado. Era um pequeno aposento junto à sala onde a sessão espírita já havia começado. Ali ficamos algum tempo, na expectativa de que a empregada, fiscal implacável de nossos atos, se recolhesse em seu quarto para que pudéssemos, sorrateiramente, liquidar com a sobra do bolo de aniversário. Chocolate com creme e cerejas! Uma delícia digna de “repeteco”! Valeu a viagem! Retornamos para o quarto lambendo os beiços, pé ante pé e nos afundamos sob a coberta.  Dava para ouvir os sons estranhos produzidos na misteriosa sala e que se propagavam pelos sombrios corredores do casarão. O nocaute final do sono e do medo demorou, mas acabou acontecendo.

Guaratinguetá em 1928. Acervo Memória de Guaratinguetá - Museu Frei Galvão
Guaratinguetá em 1928. Acervo Memória de Guaratinguetá – Museu Frei Galvão

O amanhecer em Guaratinguetá, além do perfume das roseiras do jardim que circundava a casa, chegou impregnado do delicioso aroma de café que invadiu os espaços e veio nos despertar. Rápido ao banheiro e depois à cozinha, onde, com a mesa arrumada, os olhos indagadores da empregada passeavam entre a vazia bandeja do bolo e o nosso inocente e imperturbável olhar. Fez-se um pequeno e desagradável silêncio que consegui quebrar exclamando: Esse café deve estar muito bom! – Cadê o resto do bolo? – indaga, cinicamente, Brasil Natalino, tocando na ferida. -Acho que andou formiga por aqui durante a noite, disse a empregada, com a mão na cintura e um pouco mais descontraída. E não andou?- disse. Chegamos a ouvir seus passos no corredor!  Todos riram. Tomamos o café e saímos para um passeio. No centro da cidade a diversão foi presenciar a atitude esperta de um mendigo que, malandramente, mancava numa das pernas e pedia esmolas com a mão direita super agitada junto ao peito. Nem todos percebiam, mas o seu ardil caía por terra quando cessava instantaneamente o rápido movimento daquela mão para receber e guardar as moedas. E lá ia ele, novamente mancando e agitando ainda mais à mão, para amolecer o coração de outras vítimas E o que mais pudemos ver naquela movimentada Praça? Acima de uma larga porta estava escrito: RADIO CLUBE. Sem dúvida que entramos prá conhecer. Falamos com o gerente e depois de explicar o que fazíamos e o motivo que nos levava àquela cidade, recebemos convite para a participação num programa de auditório, à noite. Fechado! Pode contar com a gente.
Parece que ainda vejo o semblante sisudo do homem do casarão quando anunciamos o compromisso assumido com a emissora e que nos obrigava a ficar “apenas” mais um dia na casa mal assombrada.

[box style=’info’]Celio Moreira
celioconhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.

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