DOIS MORTOS SEM SEPULTURA

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Por Paulo de Tarso Venceslau

Não se trata da peça de Jean-Paul Sartre, publicada em 1946, que narra a história de um grupo de partisans (guerrilheiros) durante a segunda guerra mundial.

– O que aconteceu com fulano?

– Foi para os maquis (resistência francesa)…

Ir para a resistência significava abandonar o lar e a família, desaparecer legalmente da vida, aceitar as mil penúrias da

vida errante, lutar até a última gota de sangue e talvez morrer nas mãos das tropas de ocupação ou frente a um pelotão de fuzilamento. Depois da vitória das forças aliadas, os jovens combatentes envelheceram e hoje são respeitados e conhecidos com Velhos Combatentes.

Em 1974, o físico taubateano Wilson Silva e sua esposa Ana Rosa Kucinski eram um casal de guerrilheiros urbanos. Julgavam-se herdeiros dos partisans europeus.

Presos pela repressão política que reinava no Brasil, nunca mais foram vistos. A edição 166 de maio de 2004 do Jornal CONTATO trazia uma reportagem.

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Estadão Novo, 1960: de baixo para cima, Paulo Pereira, Osni Guarnieri, Nilton Guimarães e Herbert Marques; Adilson, Cobra, Marco Antonio Reinol, José Carlos Simi e Wilson Silva; Cleber, um japonês não identificado, Manoel Carlos de Carvalho, Aranha, Mario Nicolini e Ivan Galhardo (fardado)

“O cadáver de nosso querido colega, amigo e companheiro Wilson Silva nunca foi encontrado.

No Estadão, para quem não se lembra, ele foi colega de classe do economista José Carlos Simi, dos médicos Paulo Pereira e Cesídio Ambrogi, do arquiteto Manoel Carlos de Carvalho, do jornalista Osni Guarnieri, e muitos outros”.

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Estadão Velho, 1959: no chão, José Carlos Simi, Dilson Abifadel, Rinaldo, Marcondes e José da Costa Neves Júnior; no primeiro degrau, Osni Guarnieri, Marco Antonio Reinol, Tales Molica, José Carlos de Carvalho, Duda, Ivan Fernandes, Roberto Di Lorenzo, Silvio Mateus, Paulo Pereira, Claudionor, Nilton, Cesídio Ambrogi Filho e Wilson Silva; e em pé no centro Manoel Carlos de Carvalho e Herbert

Dona Lígia, sua mãe, então com mais de 80 anos, não se conformava. Wilson era muito carinhoso. Levou-a para morar com ele em São Paulo, onde residia desde que se formara, com brilho, em Física, pela Universidade de São Paulo. Na USP, Wilson conheceu e se casou com Ana Rosa Kucinski, então uma estudante de Química, mais tarde professora muito respeitada por alunos e mestres da USP.

No dia 22 de abril de 1974, Ana desapareceu junto com Wilson. No dia anterior, ele havia comemorado seus 32 anos num almoço em família, em Taubaté, na mesma casa onde morava dona Lígia até seu falecimento ocorrido na sexta-feira, 4 de maio de 2012. Dona Lígia não tinha esperança de reencontrar o filho vivo.Mas nunca poderia imaginaque Wilson e Ana Rosa seriam torturados e mortos antes de terem seus corpos incinerados em uma usina de açúcar em Campos de Goytacazes, estado do Rio de Janeiro.

Quem revela esse episódio é Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS capixaba, a dois jornalistas autores do livro Memórias de uma guerra suja. O policial afirma ter participado desse episódio, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DEOPS paulista.

Dona Lígia morreu sem saber que as unhas da mão direita de Wilson tinham sido arrancadas. Assim como foi poupada de saber que sua nora apresentava “muitas mordidas, resultado da violência sexual que sofreu dos torturadores”, segundo Cláudio Guerra, que ainda afirmou que ele próprio levou o cadáver de Ana Rosa para ser incinerado. O depoimento desse agente policial é a revelação mais bombástica dos últimos tempos e deverá provocar muita turbulência na seara dos direitos humanos.

Wilson e Ana Rosa não tiveram a merecida sepultura, mas ainda terão espaço no panteão das vítimas da ditadura

por resistirem ao obscurantismo que marcou esse período da História do Brasil.

Publicado originalmente na edição 548 do Jornal Contato

Para saber mais:

Brasil: Nunca Mais Digital

Uma monumental realização que disponibiliza cerca de 900 mil páginas digitalizadas de 710 processos julgados pelo Superior Tribunal Militar durante o regime militar.

Direito à memória e à verdade

Livro-relatório que registra e divulga o trabalho realizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) – instituída pela Lei nº 9.140/95, de dezembro de 1995, ao longo  de 11 anos. O caso Wilson Silva/Ana Rosa Kucinsk Silva esta na página 380.

Livro de Bernardo Kucinski sobre ditadura chama a atenção dos alemães

A busca por Ana Rosa Kucinsk compõe o quadro narrativo de “K.”, do jornalista, cientista político e professor aposentado da USP Bernardo Kucinski, atualmente considerado uma importante voz para o reconhecimento e memória dos desaparecidos políticos durante o regime militar.

Clique nos títulos abaixo para ler as matérias.

 

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Uma lápide para Wilson Silva
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