O Bentinho do Guatura

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Por Renato Teixeira

Fui criança em Ubatuba, nosanos cinqüenta. A cidade iado Aeroporto Gastão Madeira,um ubatubano que desenvolveu a bússola aérea, e que a meninada conhecia apenas como “Campo de Aviação”, até as duas pontes sobre o Rio Grande (ao lado da famosa “rampa” onde se comercializava o pescado e se comia o magnífico cuscuz do Gaiato) e o cais dos barquinhos de pesca que saíam em revoadas marítimas todas as manhãs, com seus motores a diesel pipocando sobre as ondas, em direção ao alto mar.

A cidade da minha infância era transparente como um vidro; todos se conheciam e “se sabiam” pois a comunidade urbana e rural somadas, não passava de cinco mil pessoas. Se alguém morria, a noticia corria rápido, numa espécie de internet boca a boca. Digo mais, se alguém desse um grito no meio da noite, toda a cidade acordaria em pânico.

Gastão Madeira (wikimedia commons)
Gastão Madeira (wikimedia commons)

As pessoas da minha infância deixavam visíveis suas habilidades. A maioria pescava, outros faziam tamancos, outros labutavam vida a fora, na rua do Comércio. Havia, por exemplo, Lauro de Aquino, um cidadão de utilidade pública, com mil habilidades. Concertava motor de avião, extraía dentes, confeccionava ternos e colecionava discos 78 rotações. Até os projetores do Cine Iperoig, onde meu pai trabalhava como gerente, era Lauro que os mantinha funcionando.

Havia também tipos como o Zeca Pão, pai de meus amigos Plínio e sua irmã Mica, que limpava fossas e, como meu avô Jango, era um excelente pescador de robalos, fisgados do parapeito da ponte do Perequê Açu com tridentes fixados na ponta de longos cabos de madeira arremessados lá de cima, com precisão cirúrgica. Ficaria aqui horas a fio falando das pessoas interessantes que conheci enquanto vivia os primeiros 12 anos da minha existência.

Mas vamos ao que interessa; muita gente em Taubaté conheceu e usufruiu das benesses farmacêuticas de seu Filhinho que fazia desde pequenos curativos “até operações de apendicite”, diziam.

Crianças no Cine Iperoig (ubatubense.blogspot.com)
Crianças no Cine Iperoig (ubatubense.blogspot.com)

Seu Filhinho era também um compositor de letras bastante eficiente e seu nome consta de muitas parcerias com músicos da cidade. Fez muitas letras para Adolphinho, primo de minha mãe, o compositor mais produtivo que me antecedeu na família. Como já disse aqui na coluna, sou a quinta geração de músicos dos Teixeira.

Adolphinho deixou uma obra muito interessante, com potencial, inclusive, para que ele tentasse, se quisesse, uma carreira que, tenho certeza, seria muito bem sucedida. Preferiu viver uma vidinha boa em Ubatuba, na paz “daquelas praias quase mortas”, como dizia minha tinha Edith, talvez a melhor intérprete das canções de Adolphinho. Seu Filhinho compôs lindas valsas e competentes maxixes com Adolphinho; foi fundamental pela alta qualidade da música ubatubana.

Certa noite, quando o sol acabara de se por, uma parturiente começou a dar a luz, lá pros lados do Horto. Acontece que já estava por lá metade das parteiras ubatubanas, que naquela ocasião eram doze, e nada do nenê chegar.

Chamaram seu Filhinho que chamou as outras seis. Formou-se assim uma junta de parteiras que de tudo tentavam. Colocaram chapéu na cabeça da pobre mãe e a fizeram soprar uma garrafa. Nada!

Foi batendo aquele desespero e decidiram apelar para Guatura, o único parteiro homem da cidade e funcionário do posto de saúde, colega de meu tio Joanito, do Trajano e do Fifo.

Até então Guatura não fora chamado porque todos sabiam que, logo após o expediente, ele ia pro bar beber e com certeza naquelas alturas da na noite, já deveria estar irremediavelmente, breaco.

Seu Filhinho foi encontrá-lo, já trançando as pernas pela Rampa, às escuras. Levou-o para a farmácia, aplicou-lhe uma daquelas injeções que fazem o bêbado sair espirrando, e foram pra casa da mulher que sofria desesperadamente, começando, inclusive, a correr sérios riscos.

Guatura chegou, olhou, conversou com as outras parteiras e se inteirou completamente da situação. Então, enfiou a mão no bolso da calça e tirou de lá um Bentinho, essas orações que a gente escreve num papel e depois costura dentro de um paninho que se pendura no pescoço. Guatura, sem vacilar um segundo sequer, colocou o bentinho no pescoço da sofrida mãe.

Um bentinho
Um bentinho

Em seguida a rua inteira ouviu o choro do bebê, que nasceu saudável e com três quilos e meio. Seu Filhinho, que era também uma espécie de historiador amador apaixonado pelas coisas da sua amada terra natal, pediu que Guatura lhe desse de presente aquele Bentinho milagroso. Guatura o atendeu prontamente e ainda lhe disse que possuía muitos outros daquele, em casa.

Assim, criança nova no mundo, mãe tratada repousando em lençóis secos e limpos e fora de perigo, todos voltaram para suas casas, aliviados e felizes.

nascimento

Seu Filhinho contou tudo para dona Mocinha, sua mulher, que sugeriu ao marido que abrissem o Bentinho para saber qual oração era aquela, tão poderosa que conseguira por em vida a criança, trazendo para a cena de desespero, um final que poderíamos chamar até de milagroso. Religiosa e temente a Deus, dona Mocinha prometeu que em seguida costuraria novamente a oração que passaria, assim, a fazer parte da grande coleção de objetos raros que seu Filhinho foi colecionando durante os longos noventa e tantos anos da sua vida.

Naquela época, a casa de força e luz do velho seu Batista já havia desligado o gerador e a iluminação na cidade, só a vela. Cuidadosamente, dona Mocinha foi soltando o alinhavo sob a luz do um velho lampião enquanto, ao seu lado, Filhinho aguardava ansioso.

O papel da oração era pequeno e foi sendo desdobrado com todo cuidado. A primeira impressão era que a oração na verdade era uma fileira de letras sem separação, uma espécie de código. Aumentaram a chama do lampião e seu Filhinho pegou uma lupa que possuía para ler bula e assim conseguiu decifrar o mistério. Estava escrito assim e desse jeito:“pariupariunãopariuvápraputaqueopariu”.

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Publicado originalmente na edição 607 do Jornal Contato

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