CHUVA DE GRANA

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Naquela noite, eu, Eric Nepomuceno e o Beto Rushel embarcamos num ônibus da Cometa e partimos de São Paulo rumo Rio de Janeiro. Éramos três compositores classificados no festival da Record, em 1969, e fomos em direção a momentos extasiantes, no tempo em que a vida é nossa melhor amiga.

Fomos negociar nossos direitos autorais com a editora Intersong. A música do Eric chamava-se Monjolo e eu e Beto, parceiros em Madrasta que, naquela semana, seria gravada pelo grande Roberto para sair no disco “O Inimitável”.

Vou atualizar números para ficar mais pratico: negociações concluídas, Eric levou dez mil reais de advanced da editora. Eu e Beto, como estávamos a bordo da corte do rei, levamos cem mil reais, cinqüenta mil cada um.

Cheques no bolso, fomos ao banco na avenida Rio Branco e depositamos. Eu e Beto sacamos cinco mil cada um sendo que, a nosso pedido, quinhentos reais da minha parte e quinhentos da parte do Beto, vieram em notas de um real. O Eric, se não me engano, sacou quinhentos reais; mas suas intenções eram bem mais ortodoxas que as nossas.

O táxi DKW deslizava pelo aterro levando nossas alegrias. Eu e Beto no banco traseiro começamos a jogar as notas de um real pelas janelas. O aterro não tinha ainda o volume de trânsito que tem hoje.

Os pneus começaram a cantar atrás de nós enquanto o dinheiro voava, soprado pelo mesmo vento que balançava as folhas dos coqueiros.

Capa do LP do Festival de Música Popular Brasileira de 1969
Capa do LP do Festival de Música Popular Brasileira de 1969

Foi desse jeito que começamos a comemorar o fato de termos uma canção gravada pelo Rei. Ele vendia mais de um milhão de discos e acabara de ganhar o festival de San Remo.

A gente era muito jovem e, quase todos os dias, nossos nomes e nossas fotos saíam nos jornais. Éramos a nova safra. Estávamos comemorando todas essas benesses que inflavam nossos egos.

Milton Nascimento, que no ano anterior havia se consagrado, estava fazendo um show na boate Sucata, na Lagoa.

Resolvemos cometer mais uma extravagância para irritar o Eric, que estava gastando a grana dele com muito critério e se divertindo com nossas loucuras juvenis e repetindo o tempo todo que a gente havia pirado de vez. Convidamos o pai do Beto, o grande ator Alberto Rushel, e seus amigos para que viessem conosco assistir o Milton.

Calculo que havia uns quatro amigos do Alberto, entre eles o genial Luiz Delfino, todos aposentados e visivelmente carentes de uma noitada daquelas: boca livre total, tudo por conta dos autores de Madrasta.

O Eric entrou na roda porque eu argumentei com o Beto que seria uma grande sacanagem deixá-lo fora daquela; afinal, de certa forma, ele era nossa platéia. Bebemos dos melhores vinhos, comemos lagosta e nos deleitamos com sobremesas flamejantes. E assistimos, emocionados, o Milton, exuberante, louvado por todos. Nem parecia o velho Bituca, nosso parceiro, batalhando um lugar ao sol como nós, amigos dos sonhos cultivados nas madrugadas sem fim da galeria Metrópole.

Pedimos a conta. Tínhamos ainda muito dinheiro e havíamos combinado gastá-lo só com coisas supérfluas. Aquele jantar nababesco era um evento que, nós sabíamos, jamais iríamos esquecer.

Roberto Carlos e Beto Rushel no Festival de Música Popular Brasileira da Record em 1968. (Cristiano Mascaro)
Roberto Carlos e Beto Rushel no Festival de Música Popular Brasileira da Record em 1968. (Cristiano Mascaro)

O maitre se aproximou e discretamente comunicou a mim e ao Beto que éramos convidados de mister Milton. Sentimos a mesma sensação de um cachorro quando o carro perseguido pára, repentinamente. Não conseguimos gastar nada naquela noite. O Beto queria ressarcir o Milton, mas eu argumentei que a intenção dele talvez fosse reverenciar os grandes artistas que estavam com a gente e, portanto, o negócio era ficar quieto.

Estávamos hospedados no hotel Apa, na avenida Nossa Senhora de Copacabana.

Compramos uma máquina fotográfica descartável e fotografamos o Eric, de cuecas, deitado na cama e coberto de dinheiro. A grana dele estava no fundo da mochila.

Ficamos alguns dias na cidade maravilhosa até detonarmos, em conjunto, nossos dez mil reais. Precisávamos voltar. Quando fomos acertar a conta do hotel, surpresa! Estávamos duros, completamente duros. Esquecemos de calcular esse detalhe e o hotel não aceitava cheque, principalmente de músicos.

Então, nosso velho e querido amigo Nepomuceno, com toda grandeza de seu espírito irmão, sacou de suas reservas e nos salvou. Riu por último, literalmente.

Assim é a vida!

Esse fato está contado na biografia do Roberto, que se divertiu muito com a história. Mas só o jornal Contato tem a versão original, que tive o cuidado de mostrar pro Beto aprovar.

A aprovação do Eric eu não pedi porque talvez ele nem se lembre mais desses detalhes. Afinal, para um escritor que traduziu Garcia Marques essas historias absurdas devem ser mesmo, coisas corriqueiras. Ainda mais para ele que, há anos, tenta descobrir a que horas as luzes do Redentor se acendem e a que horas elas se apagam.

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Texto publicado originalmente na edição 574 do Jornal Contato

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