ÁGUAS DE JANEIRO

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Já na Grécia Antiga, Heráclito refletia sobre a mecânica do tempo utilizando o leito do rio como uma metáfora: o rio pode ser o mesmo, mas as águas que me banharão serão sempre diferentes daquelas que me envolveram outrora.  Na passagem de ano visitei Taubaté: a mesma cidade, outros tempos.

Heráclito
Heráclito

Fiquei espantado em ver como a cidade mudou pouco em dois anos. Mas também fiquei pouco tempo, então o que poderei dizer sobre a matéria de toda cidade, o cotidiano? Apenas coloco aqui minhas impressões. As promessas continuam as mesmas: trem-bala, aeroporto, conurbação, etc. A última efeméride foi a inauguração de um novo shopping.

Promessas também no meio político, como sempre, mas essas mais urgentes. Afinal, após o dramático fim da era peixotiana o que se espera é que se reabilite uma cidade que sofre com a má administração de seus gestores há tempos e que agora carrega ainda o peso de uma imagem pública não muito boa depois dos escândalos não só de Peixoto, mas da megagrávida e da breve passagem do defensor de Gotham City por estas bandas.

O poeta e jornalista Gentil de Camargo afirmava que Taubaté era uma grande cidade pequena. Estávamos nos anos 30 com a industrialização batendo á nossa porta, mas ainda assim preservava-se o costume dos saraus, das noites de viola, dentre outros. Ora, esse fato é facilmente explicado: modernização conservadora. E isto fica mais evidente quando se compara a trajetória da cidade de Lobato com Manaus, onde a entrada do capitalismo industrial fugiu das rédeas de suas enfraquecidas elites.

Barrington Moore Júnior
Barrington Moore Júnior

Desde que o sociólogo Barrington Moore Júnior criou o termo nos anos 60, modernização conservadora passou a se entender como um processo em que uma certa elite, geralmente ligada ao mundo agrário, agrega inovações materiais e econômicas em sua comunidade, desde que elas não impliquem em uma mudança de mentalidade e de modos de vida. Foi o que os  barões do café fizeram em Taubaté?  É o que subentende-se desse texto do poeta.

Então, o tempo passa e em anos de desenvolvimentismo o Vale do Paraíba se torna uma rota para a industrialização. Com o fim do século XX, a situação se altera: não é mais o desenvolvimentismo que impulsiona a proliferação de fábricas e o crescimento das cidades, mas a globalização. Taubaté possui seu próprio distrito industrial e quem duvidar que a cidade não tenha crescido com isso convido a confrontar uma imagem da atualmente com uma de três anos atrás: conte quantos prédios haviam ontem e hoje.

Quanto ao modo de vida, embora o caipira tenha sido depreciado por toda uma literatura, da qual Lobato faz parte inclusive, hoje ele é motivo de orgulho. Somos todos Jecas graças à Deus. Será? Falemos sobre o que se entende hoje por sertanejo universitário: há quem classifique o gênero como músicas românticas ou dançantes, mas então porque se arrogar o título de “sertanejo universitário”? Porque com isso ele agrega o valor que a marca “sertanejo” possui na música nacional. Valor esse construído com a ajuda de contribuições de toda a MPB, a música de raiz e até da americanizada música country. A mudança pode ser percebida nas letras que não falam mais sobre o cotidiano da roça, mas se remetem à carros importados e baladas.

Será que a história recente de Taubaté não é similar ao dilema do sertanejo universitário: sob a capa da tradição modernizada, se esconde uma cidade que já sofreu tantas transformações que não se reconhece mais? Será que a modernização conservadora não é mais um discurso que se infiltra no espaço acadêmico sutilmente? Industrialização gera inevitavelmente progresso e torna uma cidade cosmopolita?

Acredito que fomos atingidos pela globalização, mas com intensidades diferentes. Claro, existem  pessoas e comunidades com um vínculo maior com a tradição (aqui falo não só da tradição dos grupos sociais abastados, mas principalmente daqueles menos favorecidos ligados à roça) que fazem chegar aos nossos dias costumes de um outro contexto. O fato da cidade também ser permeada de prédios históricos costuma ser associado á uma ligação profunda com o passado. Mas quando temos em vista os cuidados com estas casas e como elas são pouco frequentadas tendemos a enxergar aí um argumento falho. Ora, monumentos não são os únicos espaços de memória. A Feira da Breganha com seus vendedores, seus clientes costumeiros e com seus rituais, como a roda de choro, não deixa de ser um local onde memórias são construídas e resignificadas.

Vista aérea de Taubaté. Foto: Cavex
Vista aérea de Taubaté. Foto: Cavex

Mesmo me policiando contra o saudosismo, tenho de afirmar que Taubaté parece uma grande cidade pequena, mas não quero com isso implicar que devemos louvores à modernização conservadora encetada pelos barões e industriais. Responsáveis também são os cidadãos que, cada um ao seu modo, cultivaram seu modo de vida menos por consciência da importância da sua identidade frente á globalização, por exemplo, mas por conta da necessidade de sobreviver. O progresso, prometido tantas vezes, parecia algo abstrato demais para a maioria dos habitantes. Ainda hoje parece. Um trem-bala seria realmente acessível ao povo?

Deixo os questionamentos aqui e gostaria de fechar o texto agradecendo á calorosa recepção que recebi durante essa breve visita. Novas amizades, antigos confrades, todos juntos. Sou muito grato pelas gargalhadas e pelas conversas sinceras. Lamento não ter ficado mais e aproveitado melhor. Mas me conforta saber que nesse mesmo rio as águas podem ser outras, mas lá estarão, com um caiaque provavelmente, rostos bem conhecidos.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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