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Os relatos estudados revelam o olhar externo quanto a realidade regional, podendo, por vezes, revelar aspectos minuciosos quanto ao passado. O olhar do viajante é diferente do habitante da região, mesmo que nos dois casos, ambos estejam impregnados de juízo de valor.
É preciso ter em mente que o viajante carregava consigo uma bagagem cultural formada em moldes diferentes da cultura local e que ele media de maneira sistemática e precisa os fatores físicos que intervêm em cada lugar estudado – tendo em vista que vinham em missão científica com o objetivo de “redescobrir” do mundo -, por isso, suas aventuras seriam descritas através de uma ótica pessoal, isto é, a somatória de sua bagagem cultural com a sua subjetividade.
Portanto, o relato do viajante pode apresentar alguns pontos ignorados pela historiografia local recente (talvez pelo comprometimento dos historiadores locais), ou que em algum momento não interessava apresentá-los. A historiografia pode comprometer-se se isso não for levado em consideração.
Apesar do espaço temporal que separa a presença desses viajantes em Taubaté, os relatos desses “peregrinos” apresentam semelhanças, normalmente, quanto a descrição estrutural da cidade. Por todos eles são relatadas as construções singelas da cidade, Ayres de Cazal, o primeiro estudado, apresenta a vila de Taubaté como composta por miseráveis construções. Ao longo do tempo percebemos uma pauperização infra-estrutural dessa mesma vila em virtude da acumulação de capital se concentrar no campo. Não obstante a pujança alcançada pela cidade ao longo do século XIX, os viajantes -em especial Zaluar- não percebiam os reflexos da ascensão econômica da cidade dentro de sua circunscrição. Por outro lado, conseguimos perceber as primeiras contradições, em especial na análise de Zaluar. Essa contradição é resultante das impressões superficiais do viajante que, apesar de retratar o que viu, limita-se à aparência da cidade e não compreende que a intensa atividade urbana era reflexo da ascensão econômica atingida pelo setor cafeeiro.
Contundente é a observação de Saint-Hilaire, ao mesmo tempo que menospreza a situação da vila revela os primeiros sinais das transformações econômicas sofridas no período, refletidas em todo território brasileiro, o que viria a ser o sustentáculo da economia brasileira durante todo período imperial até as três primeiras décadas do Republicanismo.
Em seu relato sobre Taubaté deixou implícita a formação da estrutura da economia monocultora de café que viria a ser em larga escala e que o período de que fala era de transição econômica – da cultura canavieira para a cafeeira.
Esses relatos fornecem subsídios para compreender a mentalidade do viajante em contraponto à do habitante local. Desse ponto de vista, observa-se que a razão explicativa para o preconceito do viajante, principalmente o europeu, quanto ao habitante local sustenta-se na concepção de civilidade ainda em desenvolvimento na modernidade da Europa tão apreciada pelos pesquisadores do período e nesse momento, pelo menos no sentido social, tão distante da brasileira.
Por outro lado, não foi possível determinar a lógica de desenvolvimento urbanístico e social de Taubaté. Compreender a evolução urbana da vila e cidade de Taubaté como processo único e estanque do restante do Vale do Paraíba é um erro. Essa curta série, que pretendo deixar em aberto, é o resultado dessa conclusão. Chamo de “Vale de Viajantes”, mas trato apenas de Taubaté. Pode parecer falho, incompleto… e é. Nem sempre o pesquisador consegue êxito absoluto naquilo que pretende. A pesquisa, como qualquer projeto, sofre as alterações necessárias para melhor se ajustarem aos resultados da sua execução. Não julgo que seja um esforço frustrado quando não se atinge o objetivo originário do projeto. É um ajuste.
Julgar que Taubaté é única no processo de transformação urbana do século XIX é insustentável. Obviamente o processo que alguns chamariam de “evolução urbana” teve suas particularidades, no entanto, as transformações sofridas pela cidade assemelham-se muito com as de Guaratinguetá, Lorena e Pindamonhangaba, pois todas essas cidades aproveitaram-se do sucesso da produção cafeeira e, pouco a pouco, transformaram seus respectivos centros urbanos em centro de concentração humana, dinamizando o regime de trabalho, de serviços e entretenimento. Além disso, a comunicação entre essas cidades era muito fácil. Por serem rota obrigatória entre São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, foi-lhes permitido desenvolvimento muito semelhante, pois deviam atender a demanda de viajantes que objetivavam fazer negócios nas regiões de destino.
Além disso, possuem a característica de cidade ruralizada na primeira metade do século, tendo os centros urbanos habitados apenas nos finais de semana para irem ao mercado e em dias de festas religiosas, assumindo característica de centro de encontro entre a população, sendo pouco habitada. Esse quadro se modifica com o sucesso econômico da região, as cidades passam a ser melhor definida como espaço de ação, administrativa e socialmente ativas, umas mais, outras menos. A sociedade passa a ser também melhor definida, pois o advento das inovações tecnológicas demandava maior número de trabalhadores especializados. Por isso surgem em grande número os profissionais liberais, como advogados e médicos.
Os advogados eram os homens letrados, que serviriam não apenas para defender os interesses dos homens ricos, mas para dissipar os ideais das categorias sociais, por meio de discursos públicos ou mesmo pela imprensa que nascia na região. O surgimento de grande número de médicos sugere uma maior preocupação com a saúde pública, por isso, ao mesmo tempo em que ocorre a explosão de profissionais liberais, surgem os vários problemas característicos das cidades, como a concentração de homens pobres, falta de saneamento, falta de habitação para todos, falta de emprego. Daí o aparecimento das casas de misericórdia, dedicadas aos mais variados santos católicos, com o objetivo de atender aos pobres que se amontoavam.
Encontram-se então vários pontos passíveis de análise. O processo histórico de mudanças na estrutura urbana e social das cidades foi muito significativo entre 1822 e 1870. Nesse período houve o rompimento com a coroa portuguesa (1822), ascensão de um imperador (D. Pedro I), queda do imperador e início do período regencial (1831 – 1840), instalação da lei Bill Aberdeen, que dificultou o tráfico negreiro para o Brasil, ascensão de outro imperador (D. Pedro II), Lei de Terras e Lei Eusébio de Queiroz (1850), Guerra do Paraguai (1864), auge da produção cafeeira no Vale do Paraíba(1855-1875), surgimento da Estrada de Ferro (1876), entre muitos outros acontecimentos que serviram para uma nova conformação das cidades.
São adventos políticos, sociais e tecnológicos que interferem na cultura urbana, dando a cidade novas características e reformatando as relações que se dão entre os indivíduos. Essas relações são muito acentuadas nos relatos dos viajantes.
No caso de Saint-Hilaire, é muito criticada a falta de interesse na política pelos paulistas. No período de sua peregrinação por São Paulo (1822), os debates na colônia estavam muito vivos sobre o iminente rompimento com a coroa portuguesa. Porém, na província de São Paulo depara-se com profunda alienação política de seus habitantes, inferindo a responsabilidade desse “mal” social à “alta de intelectualidade” do indígena, muito miscigenado em São Paulo. Tanto, que os hábitos dos paulistas (como dormir em redes) são muito criticados pelo botânico. O atraso frente à população mineira (mais ilustrada) era extremamente visível, pois não era tão miscigenada.
Contudo, no segundo período (após 1850), as tenções políticas já não eram mais tão sentidas pela população, e pouco aparecem nos relatos de viagem, apenas no que tange a questão da escravidão. Sobretudo no relato de Zaluar, as críticas contra os paulistas são menos agressivas do que as de Saint-Hilaire. Nota-se, por meio de seus relatos, que a sociedade manteve muitos traços coloniais, mas o nascimento da indústria, fortalecimento do comércio e intensificação da vida urbana, tornaram a aparência do Brasil mais “agradável” aos olhos estrangeiros, causando-lhes menor estranheza.
Com toda essa história, entra em pauta várias questões: Por que as cidades mantiveram traços coloniais durante toda extensão do século XIX? Quais eram as referências dos viajantes para fazerem suas observações? Como era sua relação com as cidades? Qual era, para eles, o modelo de cidade ideal? O que é cidade?
Não me é possível, nesse momento, dar todas essas respostas. Justamente por isso, deixo expresso que uma pesquisa mais cuidadosa e apurada se faz necessário. Não fecho um capítulo, apenas alerto para que se pesquise, que não se pense em esgotar um assunto, que se faça esforços para que não se tome conclusões e ideias consagradas como verdades únicas e conclusivas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Angelo Rubim é historiador, produtor do Almanaque Urupês.
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