Merencória

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Começo dos anos 1970 foi quando eu passei a me sentir mais integrado ao mundo artístico de São Paulo. Vivíamos um período de muita repressão política e eu tinha a nítida impressão de que poderia não voltar pra casa, caso um militar qualquer me achasse com cara de subversivo. Esse tipo de avaliação, partindo de um sujeito nitidamente despreparado para qualquer tipo de análise psicológica, era perigoso e assustador. Principalmente para um cara como eu, que resolvera adotar uma estética hippie. Mas havia um detalhe a meu favor: eu era contratado da TV Tupi. A Tupi era a TV mais vista no Brasil e eu estava no ar pelo menos duas vezes por semana em programas de grande audiência, o que me dava grande visibilidade. Isso ajudava porque os próprios policiais, quando me viam andando pela rua, comentavam que haviam me visto no programa tal.

Chatô, na TV Tupi


A cena musical era densa e muito imperativa; a bossa nova colhia os frutos da gloria; Tom gravando com Sinatra e “Garota de Ipanema” sendo uma das canções mais tocadas no mundo em todos os tempos.

Havia também a meteórica ascensão do Chico Buarque e a intrigante proposta tropicalista de Caetano e Gil. O pessoal das antigas, aqueles da Radio Nacional, perambulava generosamente pelas noites paulistanas. Conheci todos e todos me davam atenção. Cheguei a participar de uma gravação da música “De Babado” do Noel Rosa, ao lado de mitos como Ismael Silva, Herivelto Martins, Zé Kéti, Orlando Silva que, com cinqüenta e poucos anos, já parecia um ancião, o elegantíssimo Athaulfo Alves e o eterno Cauby Peixoto. Entrei no grupo porque alguém havia faltado e eu era o único com smoking que sabia cantar o verso do faltoso.

Mas, naquele momento ainda não havia encontrado meu caminho, não havia ainda achado meu jeito de dizer as coisas. Apenas sentia uma grande energia me levando na direção de algo que me diferenciasse dos outros. Talvez por ser taubateano, eu nunca quis ser apenas mais um. Queria acrescentar alguma coisa na sopa da música.

As valsas brasileiras eram minha praia. Quarta geração de uma família de valsadores apaixonados, eu dominava com certa tranqüilidade os segredos desse tipo de composição.

Encarte do LP “Maranhão e Renato Teixeira”

Então, dentro dessa sopa musicalmente substanciosa onde me encontrava, compus a valsa “Merencória”, que era uma definitiva declaração de auto entrega ao improvável. Com ela eu me desprendia de Taubaté e me lançava ao mar. Sem dúvida uma canção arrancada lá do fundão da alma.

Ellis, quando gravou “Romaria” e “Sentimental eu Fico”, só não gravou “Merencoria’’ porque três músicas de um só autor lhe pareceu exagerado naquela altura do campeonato onde havia milhares de outros autores querendo entrar no disco.

Para os amigos, aí vai a letra de “Merencória”

Na casa dos meus pais

Uma janela aberta

E o mundo na cabeça

Foi o que bastou

Vim

Na mão um violão

Na boca a voz ingênua

Insinuando fraca

Coisas que eu dizia

Com o coração

Ah,

E o que ficou pra trás

A Rádio Difusora

E o supermercado

Onde eu trabalhei

Mas

Tomada a decisão

Tratei de esquecer

Da capital do Vale

A terra de Celly

A minha Taubaté

E a vida que se deu

Foi bem melhor

Vi

Que até então

Eu simplesmente não vivi

Sou agora a merencória flor

Que se acabou

E deu lugar

A luz angelical

Acrílica do amor

________________

Renato Teixeira

Texto Publicado Originalmente no Jornal Contato

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