DEVO NÃO NEGO, PAGO QUANDO ENTENDER

0
Share

Dia 31 de Março passou deixando um gostinho de polêmica. Por ocasião dos 48 anos do Golpe de 1964 militares no Rio de Janeiro preparam uma comemoração que foi interrompida pela chegada de militantes de esquerda. Resultado: pancadaria. Esse episódio que aconteceu no Rio de Janeiro demonstra muito bem a ambiguidade dessa data.

Para os militares, foi o momento em que salvaram o Brasil de uma ditadura comunista. Para os esquerdistas, foi o primeiro passo na longa noite da repressão política em que o país entrou por vinte anos. Essas visões refletem a memória construída por estes atores sociais. O que há em comum em ambas é a simplificação do ocorrido: ora é um simples e macabro golpe, ora um contragolpe triunfalista. Sessenta e quatro esteve refém de visões reducionistas e apaixonadas por muitos anos. Há pouco tempo a História passou a se deter sobre esse momento com maior atenção e cuidado teórico.

João “Jango” Goulart

Hoje a historiografia aponta que 1964 foi muito mais complexo do que se imagina, tamanha a quantidade de atores sociais envolvidos e de processos que já vinham caminhando há algum tempo no país. Além disso, há que se considerar a diversidade regional: cada ponto do país experimentou esse momento de uma maneira diferente. Taubaté não sentiu 1964 com a mesma intensidade que Manaus, só relembrando que o Amazonas era um dos pontos de sustentação do governo trabalhista de Jango Goulart (por conta dos nomes de Plínio Coelho e Gilberto Mestrinho que se revezavam no Palácio do Governo).

O que isso significa? Que devemos refutar tudo o que foi falado pelas esquerdas ou pelos militares? Não. Como historiadores, devemos apenas “passar o pente fino” nas suas afirmações. Afinal, a memória pode ser limitada pela posição de quem a transmite, mas há nela sempre um fundo de verdade. Aliás, qual conhecimento não sofre influência da subjetividade dos seus pesquisadores? A História também pode ser manipulada (como foi), por mais que se arrogue o status de ciência imparcial.

A memória tem um poder não só ideológico, mas afetivo. Afinal, estamos falando de pessoas que tiveram suas vidas marcadas por tal período. Sessenta e quatro também foi um marco geracional: toda uma geração nasceu sem conhecer um Estado de Direito. Alguns podem ter tomado consciência disso, outros não. Muitos podem ter lutado para mudar isso, enquanto outros podiam estar mais preocupados com coisas mais imediatas como conseguir um emprego ou comprar um “carango”. Mesmo para esses últimos, o momento histórico influenciou e muito suas vidas.

Os anos sessenta hoje parecem muito distantes para a maioria dos jovens. Morrer por uma ideologia, seja de direita ou de esquerda, nos parece algo completamente antiquado. Claro, os radicalismos dos anos 60 e 70 faleceram nas décadas de 80 e 90 quando nascemos. O fim da União Soviética ou a Queda do Muro de Berlim significou para muitos o “fim da História” também. Pelo menos, assim pensavam até 2001. De qualquer maneira, o ponto a que quero chegar é que a minha geração se desiludiu com a política gravemente. Eis que assistem militares e esquerdistas brigando numa manifestação e não compreendem, ou pior, não se esforçam para compreender.

Peter Burke dizia que o historiador é como um cobrador de tributos: vive relembrando a dívida de seus clientes. E é disto que estamos falando aqui hoje. Trata-se de fazer enxergar uma geração que vivencia todo dia a experiência democrática, sem valorizar isso, como chegamos a uma ditadura militar no passado. Mas não basta só falar de 1964, temos de compreendê-lo bem e esse entendimento passa pela História e pela memória, uma dialogando com a outra, evitando assim reducionismos ou abstrações. Todos nós temos uma dívida com 1964, mas temos de tomar cuidado em como a pagaremos.

__________________________

Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

Related Posts
Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *