A VIOLÊNCIA BÁRBARA DA GRIPE ESPANHOLA

2
Share

Extraído de Taubaté no Aflorar do Século, de Oswaldo Barbosa Guisard

Eu ia para a C.T.I. ao raiar do dia, antes das seis horas. Vinha para o almoço correndo, correndo, comia às pressas o que mamãe fazia, trazia remédios para os doentes de casa, aplicava o termômetro para ver a febre de cada um, via os que estavam melhorando e os que estavam piorando, dividia com minha mãe as responsabilidades dos medicamentos, e uma das duas vezes consegui trazer médicos para examinar os gripados. Nossa empregada, uma senhora de uns quarenta anos, também caiu de cama, foi piorando, tossindo e gemendo sem descanso. Tentamos interna-la no Hospital e mesmo na enfermaria de emergência da C.T.I. na antiga fábrica de malhas e não houve possibilidade. A febre gripal grassava intensamente. Tudo abarrotado.

                Dr. Granadeiro Guimarães veio vê-la: já estava vomitando sangue naquele meio hospital que era nossa casa. Antigamente já tinha uma tosse crônica, que assustava a gente. Afinal, como dizia minha mãe, “entregou sua alma ao Criador”.

Dr. Granadeiro Guimarães (O Libertário, 9/2/1904 – Acervo AMPAH)

                Não tinha quem carregasse para a última morada seus restos mortais. Todo o mundo tinha seus doentes em casa.

                Quando o caminhão veio levar o cadáver os ajudantes tiraram o caixão dos fundos da casa pelo portão do lado, para a rua.

                Minha mãe e eu choramos abraçados. Afinal ela era um ser humano, muito humilde, uma criatura se bem me lembro analfabeta, mas simpática, que queria muito bem as minhas irmãzinhas, e que vivendo há uns três ou quatro anos em casa, muito se adaptara e era tida como pessoa da família.

                No dia seguinte chegava outra notícia em casa: Tio Virgilio, cunhado de meu pai, que foi casado com tia Maria, já tinha sido sepultado na Guanabara onde residia, vítima da gripe.

                Certo dia, quando vim para o almoço, em casa, não havia vivalma em pé.

                Com muita febre mamãe tinha ido para a cama…

                Esse um dos motivos porque, se necessário, ainda hoje, sei passar café, sei fazer um arroz, um chá, fritar um ovo, fazer uma sopa.

                Felizmente a gripe em minha mãe foi de certa forma benigna levantando-se ela uns três dias depois, ao contrário de papai, que nos deu trabalho.

                Da morte de “Nha Dovirge” como era chamada a cozinheira, as meninas somente souberam muito depois, quando já tinham sarado bem.

                Depois ocorreu também em circunstâncias tristes, a morte de uma prima nossa, filha do falecido “tio Paulo”, a que fora criada com todo o carinho pela vovó Nogueira; solteirona, balzaquiana, cordata, simpática e amiga de todos.

                De nome Semiramis – de apelido Milóta.

                Faleceu em casa de tio Irito, para onde se mudara com a morte dos que a criaram. Foi o seu cadáver levado para o Cemitério Municipal por alguns soldados dada a falta de acompanhantes normais, aliás plenamente justificada.

Imagem do Rio de Janeiro durante a epidemia de Influenza em 1918 (Revista da Semana, 26/10/1918 – Hemeroteca BNDigital)

                Guiomar, uma inocentezinha, nos seus três meses de idade, fechou o ciclo da safra da morte em nossa família. Filha dos meus tios Bernardino e Licinia.

                Alguns conhecidos entre os vitimados pela gripe, além de nossa família; Franklin Moura Almeida entre outros, e o “Sansão de Ébano” Jovino Chagas, carregador de sacaria na estação e que já havíamos visto carregar em cada braço um saco de café, com 60 quilos e mais um na cabeça – ao todo 180 quilos – sair do armazém, subir da plataforma pelo Taboado até o vagão, ali os descarregando.

                A gripe liquidou o gigante negro em menos de uma semana. E muito mais a parca levou.

                Quanto a mim, estive dois dias atordoado, sentado a um canto do laboratório improvisado, sentindo dores pelo corpo e febre. Passei dois dias comendo dentes de alho, a princípio nem sentindo gosto ou cheiro desse tempero forte e cáustico, e no terceiro dia já estava me sentindo bem. Comi alguma cabeças de liliácea.

                Titio Felix brincava comigo – “É pena que pouca gente aguenta o seu remédio mas ele é bom, é bom mesmo! E… não diga para ninguém que você não teve a gripe!”


Oswaldo Barbosa Guisard (1903-1982) 

Foi executivo da CTI, vereador e presidente da Câmara. Idealista, participou do grupo fundador da Semana Monteiro Lobato e por 30 anos foi seu principal divulgador, mantendo acesa a sua chama original. Batalhou com perseverança pela preservação e tombamento da Chácara do Visconde, local onde nasceu Monteiro Lobato. Sua fabulosa memória o levou a escrever o livro “Taubaté no aflorar do século, uma grande obra. 

Related Posts
2 Comments
Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *