Um fotógrafo infiltrado… nos arquivos digitais

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Texto de Angelo Rubim

publicado originalmente me 24/10/2014

Alguns profissionais costumam trabalhar no limite da ética, sendo desafiados e tentados a fazer de tudo por um melhor resultado, o que pode ser uma decisão absolutamente questionável. Médicos, policiais e bombeiros são exemplo. Muitas vezes, uma ação ética pode custar a vida de alguém… outras, o contrário. Vivem em uma corda-bamba.

Dia desses assisti a um bom filme que tratava sobre o assunto. “Bang-bang club” (lamentavelmente traduzido como “Fotógrafos de guerra”) narra o cotidiano de um grupo de fotojornalistas na cobertura dos últimos momentos do apartheid e a primeira eleição de Nelson Mandela, em 1994. Um deles, é o autor de uma das fotográfias mais emblemáticas de toda história. A menina sudanesa sendo espreitada por um abutre, rendeu a Kevin Carter uma publicação na capa da Times, um prêmio Pulitzer (algo como o Oscar da fotografia) e o seu suicídio. Carter foi comparado ao abutre da fotografia.

A polêmica fotografia de Kevin Carter
A polêmica fotografia de Kevin Carter

The Death of Kevin Carter: Casualty of the Bang Bang Club relata os resultados que uma fotografia premiada podem causar em um fotógrafo:

O fotógrafo que se arrisca por grandes imagens não é um fenômeno tão recente. Existem inúmeros exemplos desde os primeiros tempos da fotografia portátil.

Um deles, que conheci a poucos dias, chamava-se Joe Julius Heydecker. Alemão nascido em Nuremberg em 1916. Tornou-se fotógrafo em 1931 e, dois anos depois, jornalista do Lucerne Tageblett, um jornal suíço que existiu entre 1852 e 1991.

Uma das imagens de Heydecker no gueto de Varsóvia
Uma das imagens de Heydecker no gueto de Varsóvia

Em 1938 trabalhava em Viena, em um estúdio de fotografia, até que foi convocado pelo exército alemão depois da invasão da Áustria e se tornou oficial. Em 1941 foi enviado a Polônia, patrocinado por uma empresa de propaganda. Foi quando se infiltrou no Gueto de Varsóvia para registrar as atrocidades e a péssima condição de vida ali existentes. Produziu cerca de 1880 negativos, que estão hoje na Biblioteca Nacional da Áustria. Em 1944 voltou à Varsóvia para registrar a destruição do lugar. Esses dois ensaios foram os seus trabalhos mais conhecidos, pois, arriscando a vida, conseguiu imagens únicas, que só foram possíveis por conta da farda que vestia. As imagens só foram divulgadas em 1981, mas já se sabia da sua aventura desde o  Julgamento de Nuremberg, que condenou alguns dos dirigentes do nazismo por crimes de guerra, entre novembro de 1945 e outubro de 1946. Heidecker, ao lado de  Heinrich Hoffman, foram os únicos fotógrafos autorizados a registrar o julgamento.

Em 1960 o fotógrafo emigrou para o Brasil. Aqui, fundou o Photo Studio 1, na capital paulista, e se tornou correspondente de jornais do mundo inteiro. Entre 1961 e 1967, percorreu toda a América Latina com o fim de registrar a cultura de cada localidade.

Em uma dessas viagens passou por Taubaté, onde fotografou o Mercado Municipal, deixando registros incríveis de um espaço já transformado.

Em 1969 fundou a Atlantis Livros e, até 1978 fazia publicações semanais, sob o título “Livros Novos”, encerrando suas atividades em 1985, com a venda da empresa e sua mudança para Viena, onde ficou até sua morte em 1997.

No Brasil, Heidecker é mais conhecido por sua atividade de redator do que como fotógrafo. Ele é autor de livros que servem de referência aos estudos da Segunda Guerra Mundial, sendo a sua principal obra o livro O Julgamento de Nuremberg (1966, Editora Ibis Ltda), citado na quase totalidade dos estudos sobre esse tema.

Com essa história toda, o que mais nos interessa é que esse fotógrafo esteve em Taubaté. Passagem curta, mas suficiente para que a Biblioteca Nacional da Áustria tenha em seus arquivos os negativos e os positivos fotográficos de Heidecker sobre a cidade. Todos acessíveis pela internet, de maneira livre. (aqui nesse link: http://www.bildarchivaustria.at/Pages/Praesentation.aspx?p_iAusstellungID=1701405&p_iCollectionID=-1)

Cheguei no fotógrafo pelos meios digitais, de forma muito simples. No último dia 18 de abril, a DPLA – Digital Public Library of America entrou finalmente na internet, depois de um período de espera entre o anuncio feito por Robert Darnton (que você pode ler a entrevista aqui: http://www.nybooks.com/articles/archives/2013/apr/25/national-digital-public-library-launched/?pagination=false) e a efetiva publicação da ferramenta.

Autoretrato de Heydecker em Guarujá, em 1958
Autoretrato de Heydecker em Guarujá, em 1958

A expectativa para essa ferramenta é que abarquem todos os arquivos digitais das Américas. A grande surpresa foi a também indexação de arquivos europeus. E foi aí que encontrei Heidecker.

Na seção de aplicativos da DPLA há uma área dedicada exclusivamente ao fundo Europeana, que, por sua vez, interage com outros vários bancos de dados digitais da Europa. Para isso, bastou digitar no campo do buscador a palavra-chave “Taubaté”, que surgiu de imediato as imagens do fotógrafo.

Uma das inúmeras possibilidades advindas do aprimoramento da tecnologia digital. Se pensarmos bem, a possibilidade dessas fotografias permanecerem desconhecidas era enorme, ao menos aos pesquisadores que não tenham acesso ao arquivo austríaco. A digitalização de documentos e acervos quebra as barreiras físicas e reduz de forma significativa os impedimentos à pesquisa. Em poucos anos, a prática de grandes deslocamentos para realização de pesquisa documental será reduzida a patamares muito próximos de zero. O que abrirá um mundo de possibilidades, já que se encontrará de tudo com poucos clicks.

Evidentemente que essa situação ainda carece de análise, para que se explique e entenda o impacto disso nas pesquisas, mas é certo de que as chances de um salto qualitativo na produção de informação é imenso.

E os arquivos de Taubaté?

Taubaté até tentou. Em 2014 foi firmada uma parceria entre o Arquivo Dr. Felix Guisard Filho, pertencente à Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico, e setor de restauração e digitalização do Arquivo do Estado (vídeo abaixo).

A expectativa era que, em prazo médio, a totalidade dos documentos taubateanos fossem digitalizados e disponibilizados para acesso via internet.

Já que ainda não aconteceu, vamos nos deliciando com os documentos sobre Taubaté nos arquivos que já estão digitalizados (e são vários) e nos grupos das redes sociais, que são fundamentais para que identifiquemos dados presentes nesses arquivos.

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Angelo Rubim é professor de história e editor do Almanaque Urupês.
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