Guilhermo Codazzi para Lobato

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Taubaté, dia 2 de abril de 2019

Lobato,
quanto tempo!

Cem anos, mais precisamente! Cem anos, meu caro!
Como tem passado? Que presente poder falar-lhe sobre o futuro!
Como está o tempo em 1919? Anda chovendo muito aí na fazenda?
Bom, o relógio não para, então vamos ao que interessa.
Por sorte, com a bênção de Cronos, sua carta mitológica viajou pelos ponteiros do tempo e às minhas mãos chegou a tempo, sobrevoando esta nossa terra valeparaibana nas asas de um cuco de madeira e fantasia, cujo coração faz tic-tac-tic-tac…
Em sua mensagem, que muito alegrou-me, não pude deixar de notar seu apreço pela epistolografia telegráfica. O telégrafo. Ah, Lobato, o tempo lhe fará muito bem…
isso hoje é coisa do passado.
Isso hoje é peça de museu! Velharia!
Nos tempos atuais, acredite, as mensagens viajam pelo ar. Sério.
É como mágica, um telégrafo imaginário sem papel ou tinta, mas com muito pó de pirlimpimpim e alma de bem-te-vi. Como se pombos-correios invisíveis levassem palavras daqui pra lá, de lá pra cá, o tempo todo, todo o tempo, sem deixar cair uma letra sequer. Nenhuma! Incrível, não?
E tudo isso com uma velocidade espantosa, mais rápido do que notícia ruim. São outros tempos, outros tempos. A comunicação agora é em tempo real. O que é tempo real? É instantânea, na hora! Zás-trás!
Lhe parece um tempo irreal?
Mas creia, o mundo, que antes parecia tão grande e distante, hoje cabe na palma da sua mão. Sabe a incrível biblioteca do seu avô? Pois bem, ela agora cabe no bolso do seu paletó, dá para deixá-la bem pequenininha e segurá-la entre os dedos, com seus milhares de volumes. Isso mesmo, biblioteca de bolso! Dá para imaginar?
O curioso, caro amigo, é que apesar de haver tanta informação disponível e gratuita, às vezes tenho a sensação de que nunca fomos tão superficiais. Rasos.
Pueris. Penso que neste tempo presente vivemos em uma gigantesca biblioteca formada apenas por orelhas de livro.
Nos tempos de hoje, como você pode observar com a ajuda do seu Porviroscópio, nada é feito para durar. Nem mesmo as relações humanas. E o homem, em uma desabalada carreira, parece ser o único tipo de passarinho que constrói gaiolas
para si mesmo. Seria medo de voar? E adivinha qual a maior das gaiolas? O tempo.
Corre-se como nunca… mas corre-se para chegar onde?
Corre-se cada dia mais para se ter cada vez menos tempo. Às vezes me pergunto:
quando perceberemos que somos cães correndo atrás do próprio rabo?! Já há quem diga que hoje deveríamos calcular o preço das coisas em ‘tempo de vida’ e não em moeda corrente. Quanto tempo de sua vida custou esse relógio?
Creio ser uma boa ideia, já vem em boa hora.
Prezado amigo, sei que o tempo urge, e por isso encaminho-me para o desenlace desta carta. Mas, antes, quero destacar que li recentemente um livro que você ainda nem sequer escreveu, chamado ‘O Macaco que se fez homem’. Nele, me deparei com uma reflexão que você fará em 1923, em um conto que batizará de ‘Marabá’.
É um pensamento futuro, que mesmo vindo do passado me fez olhar de forma diferente para o presente.
No meio da história, você abriu parênteses para explicar o porquê de ser contra os romances que têm centenas e centenas de páginas. “Uma coisa me espanta: que haja inda hoje, nestes nossos atropelados dias modernos, quem escreva romances!
(
) A época é apressada, automobilística, aviatória e cinematográfica ()”.
Como se vê, meu caro, seus olhos estarão encantados com a velocidade do mundo nos próximos anos, na década de 1920. Isso me lembra uma canção do meu tempo, 
chamada Crônica e lançada em 1986, de uma banda chamada Engenheiros do Hawaii:
“você, que tem ideias tão modernas, é o mesmo homem que vivia nas cavernas”.
Em certa medida, creio eu, o homem é sempre o mesmo, seja a bordo de caravelas ou naves espaciais, comunicando-se por meio de cartas ou mensagens de WhatsApp (calma, eu explicarei melhor na próxima carta). Sempre apressado, impressionado
com a velocidade do mundo moderno que o cerca, correndo contra o tempo para ficar sem tempo… e com aquela sensação de que antigamente é que era bom.
Qual terá sido verdadeiramente a belle epoque?
Diante do exposto, fato é que a arte é a invenção do homem que mostra-se capaz de suplantar até mesmo a morte. Suas palavras, meu caro, atravessam o tempo e ainda são colhidas nos dias atuais, 70 anos após a sua saída de cena, como se colhêssemos deliciosas frutas maduras no quintal do Visconde em uma manhã de sol primaveril.
E como continuam atuais, modernas. Atemporais.
Por aqui despeço-me, pois certamente já estou atrasado para algum compromisso do qual nem sequer me lembro mais.
Que saudade do tempo de criança, quando eu corria pelo Sítio do Visconde e brincava com meus irmãos e primos, sem preocupações, contas, prazos ou outras chateações de adultos. Daquele tempo, além da saudade, ainda preservo comigo o
olhar do menino que tem pé de moleque e coração de capotão, além de uma certeza: ah, naquele tempo… naquele tempo é que era bom…


P.S. Em tempo:
O primeiro livro que li na vida foi um trava-língua, conhece? E meu texto preferido dizia: “O tempo perguntou para o tempo quanto tempo o tempo tem, e o tempo respondeu pro tempo que o tempo tem quanto tempo o tempo tem”.
Certo é, meu amigo Lobato, que ainda dá tempo, ainda dá tempo…

 

Guilhermo

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