Nas Pegadas do Romantismo, As Mulheres Vão à Luta

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Texto de Elaine P. Rocha

Muitos estudos sobre o feminismo no Brasil situam o movimento principalmente nas atitudes desafiadoras de mulheres como Leila Diniz, no início dos anos 70, e referem-se à grande influência do feminismo dos Estados Unidos na década de 60 no movimento brasileiro. Na verdade, o movimento feminista ou a luta pelos direitos das mulheres data de pelo menos um século antes, iniciado no último quartel do século XVIII por mulheres inglesas e francesas, sob a influência de filósofos do romantismo como Jean-Jacques Rousseau.

A princípio parece um paradoxo, o fato do movimento romântico fornecer argumentos para o feminismo, mas isso foi apenas o início de uma longa história de luta por direitos, quando a palavra e o conceito de feminismo ainda não haviam sido criados. Notem que o argumento romântico de Rousseau e outros de seu tempo, era dirigido às mulheres de uma camada superior, com especial apelo às famílias burguesas e indicava a necessidade de se educar as mulheres para fazer delas melhores esposas e mães, e ao mesmo tempo, um ornamento social.

Parte da ideia era investir na educação para que uma esposas ou filhas pudessem brilhar nos salões da sociedade burguesa, sabendo uma língua estrangeira, lendo os mais renomados autores, podendo tocar o piano e quem sabe cantar. Era a mulher-ornamento, criada para o entretenimento e para dar apoio ao sucesso de seu marido. Com o desenvolvimento da educação feminina, muitas mulheres começaram crescer intelectualmente, independente do controle masculino e muitas tornaram-se escritoras. A primeira escritora feminista do mundo moderno foi Mary Wollstonecraft, uma inglesa vinda de uma família burguesa empobrecida, que ao contrário do que se pensa comumente sobre o feminismo, era casada e tinha filhos. Em 1792 ela publicou “A Vindication of the rights of woman”, que no Brasil inspirou a obra de Nísia Floresta (outra “senhora casada e mãe de família”): “Direitos das mulheres e injustiça dos homens”, publicado em 1832. As duas obras aconselhavam as mães a educarem seus filhos para respeitarem as mulheres, incitava as mulheres a assumirem responsabilidades e tomarem decisões independentemente de pai, irmão ou marido. Adiante de seu tempo, as autoras afirmavam a igualdade social e intelectual entre homens e mulheres.

Claro que estes trabalhos tiveram um alcance limitado e lento, dada as condições sociais na Europa e nas Américas, onde poucas mulheres eram alfabetizadas. Além disso, livros como estes em geral eram banidos das bibliotecas das famílias. Mas pouco a pouco tais obras foram se tornando conhecidas, no Brasil isso aconteceria especialmente no caso de mulheres educadas na Europa.

Ao final do século XIX, o positivismo veio reforçar algumas dessas idéias românticas, enfatizando o papel da mulher como agente civilizador, modernizador. A mãe é a primeira educadora, portanto responsável pela criação de cidadãos saudáveis, patrióticos e moralmente superiores. As idéias positivistas sobre as mulheres associavam elementos da filosofia positivista e do culto católico à mãe de Jesus, ao imprimir essa mulher moralmente superior que tem como função primordial a maternidade.

No Brasil daquele momento, a escravidão já havia sido abolida, a classe média crescia junto com as cidades e a República nascente demandava mais investimentos na educação pública para atender às transformações econômicas e ao movimento modernizador. Mais e mais mulheres educadas em seus lares ou em colégios dirigidos por freiras, assumiam a tarefa de professoras, algumas por iniciativa privada, em suas próprias casas. Aquelas que viviam nas cidades apresentaram-se para lecionar nas escolas públicas.

A primeira grande batalha entre o romantismo positivista e o feminismo no Brasil deu-se quando as mulheres professoras passaram a exigir pagamento por seu trabalho, recusando-se a sacrificar-se ou a aceitar a ideia de que educar na escola é uma extensão do papel maternal de educar em casa, e portanto deve ser exercido com o coração e por amor. Durante os primeiros anos da República, professoras do Rio de Janeiro enviavam ofícios e requerimentos ao governo reivindicando seus salários, sob o argumento de que tinham que sustentar seus filhos.

O argumento da responsabilidade maternal, utilizado para obter pagamento por seu trabalho somou ao argumento da cidadã educadora, quando outras batalhas foram travadas no campo da educação, dessa vez para requerer melhor educação para as professoras para que pudessem educar melhor os futuros cidadãos do país. Isto era importante porque era negado às mulheres o acesso à disciplinas como química e cálculo, por exemplo. Com o crescimento urbano comercial e industrial muitos homens encontraram melhores oportunidades de emprego, abandonando a educação, adicionalmente, as demandas do mercado de trabalho e os planos de desenvolvimento levaram o governo a investir na ampliação da rede escolar pública nas principais cidades do país,  com isso mais e mais mulheres tiveram oportunidade de empregarem-se como professoras.

O curriculum escolar e as outras formalidades da educação eram controlados por inspetores que visitavam as escolas e denunciavam irregularidades. Uma das irregularidades mais frequentes era o desrespeito à norma de se oferecer a meninos e meninas diferentes currículos, ao qual professoras argumentavam em ofícios às autoridades, que não dispunham do material necessário para trabalhos manuais femininos, como tecido, linha e agulha, devido à pobreza de sua escola e clientela, portanto, não tinham outra saída além de manter as meninas em sala de aula enquanto ensinavam matemática mais avançada aos meninos; outras argumentavam que sua escola não possuía salas separadas, portanto eram obrigadas a ensinar igualmente a meninos e meninas; outras ainda diziam que estavam em tempos de chuva ou muito calor, e que não dispondo de abrigos para as meninas do lado de fora da sala de aula, tinham que admiti-las em sala enquanto ensinavam aos meninos e por uma questão de disciplina elas ensinavam as meninas também, para mantê-las ocupadas. Imagina-se que este argumento poderia acalmar a ira (imaginária) de Rousseau: pois havia a disposição em se educar as mulheres para preencherem papéis diferentes, porém a necessidade material obrigava as professoras a promoverem uma educação igualitária!

As duas primeiras décadas do século XX ofereceram golpes fatais ao romantismo positivista, quando as mulheres brasileiras – agora educadas – ampliaram suas reivindicações para direitos eleitorais (de serem candidatas a cargos políticos e de serem eleitoras). Mulheres, como a professora primária Leolinda de Figueiredo Daltro em 1910, desafiaram a Constituição Federal ao registrarem-se como eleitoras baseadas na ausência de um impedimento claramente determinado pela lei, já que a lei negava o direito de vota a analfabetos, mendigos, soldados e membros do baixo clero, mas nada dizia sobre as mulheres! O voto feminino causou grande polêmica no Brasil, com grande rejeição por parte de homens e mulheres que viam isto como uma aberração. Às críticas, as feministas rebatiam: os positivistas não dizem que nós somos moralmente superiores? Que somos imunes à corrupção? Então, devemos ser melhores políticas e mais aptas a escolher nossos representantes políticos.

Leolinda Daltro .
Leolinda Daltro

A Primeira Guerra Mundial também teve grande influência sobre a luta feminista no Brasil e no mundo. Nos países europeus, a Grande Guerra, como veio a ser chamada, esvaziou as cidades, levando os homens aos campos de batalha, dos quais muitos não regressaram ou regressaram inválidos. A guerra intensa e longa, necessitava de mais e mais pessoal dedicado ao atendimento dos enfermos e feridos, para isso, a Cruz Vermelha buscava mulheres para alistarem-se como enfermeiras voluntárias. O treinamento e emprego de mulheres laicas como enfermeiras seguia uma tradição de esforços de guerra que vem de tempos imemoriais, porém a novidade daquele início de século era o treinamento que essas enfermeiras recebiam, algo que antes era reservado a religiosas, chamadas irmãs de caridade.

 

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A Cruz Vermelha foi fundada no Brasil em 1910, causando um certo escândalo. Muitos criticavam o fato de moças solteiras ficarem expostas nos campos de batalhas e enfermarias, lidando com o corpo masculino; para eles, havia o risco dessas moças ficarem moralmente marcadas ou mesmo desonradas por exercerem tal ofício. Os críticos ignoravam o fato de que faz parte do papel feminino em todas as sociedades o cuidado com os enfermos na família e na comunidade; na prática, as mulheres têm muito mais contato com o corpo humano do que os homens, porém careciam do saber autorizado das academias. Imaginem o que seria para a sociedade, pensar nessas jovens mulheres aprendendo sobre a anatomia masculina e praticando a enfermagem num campo em que a maior parte de seus pacientes seriam homens. Elas que até então tinham seu direito de aprender biologia, anatomia e química limitado por crendices eugênicas que ditavam ser o cérebro e o corpo feminino incapaz de absorver certas informações.

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As críticas ajudam a explicar o lento crescimento da Cruz Vermelha no Brasil, além do fato do país não estar diretamente envolvido em guerras. A Cruz Vermelha Brasileira teve início em São Paulo, no Rio de Janeiro foi inaugurada em 1917 e no Vale do Paraíba a primeira escola de enfermagem só foi criada em São José dos Campos em 1956.

Paralelamente à campanha para mulheres se alistarem como enfermeiras, na Europa houve um movimento pela educação militar das mulheres, ou seja para um treinamento militar, como os reservados aos homens que iam para os campos de batalha. Jornais brasileiros noticiavam em 1916 e 1917 sobre mulheres treinando com rifles e espadas na Rússia e na Inglaterra ao mesmo tempo em que mostravam os anúncios da Cruz Vermelha e louvavam o sacrifício das jovens enfermeiras. O treinamento militar foi uma iniciativa feminina, e era destinado a criar uma milícia que se encarregaria da defesa das cidades, como disse antes, desfalcadas de homens para protegê-las.

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Escola D. Orsina, 1917

As notícias sobre a guerra e o grande debate nacional sobre a participação do Brasil no conflito, principalmente depois dos ataques em 1917, inspiraram a professora Leolinda Daltro a fundar no Rio de Janeiro uma “linha de tiro” para mulheres em sua escola secundária, seguindo também a tendência daquele momento em se criar linhas de tiro particulares que deveriam treinar os soldados brasileiros a serem enviados para a Europa. D. Leolinda afirmava nos jornais que as mulheres que ela estava treinando em sua escola poderiam tanto ir para os campos de batalha como poderiam atuar na defesa da cidade do Rio de Janeiro enquanto os homens eram enviados a lutar nos países estrangeiros. A Escola D. Orsina da Fonseca, dirigida por pela professora Leolinda oferecia às alunas a opção de treinamento militar e/ou em enfermagem, fazendo exercícios práticos em pleno centro do Rio de Janeiro, o que atraiu grande público que provocava as alunas com piadas, vaias e comentários ofensivos.

É preciso traçar um parenteses aqui para explicar que também no México, outra sociedade patriarcal fortemente influenciada pelas idéias positivistas na virada do século XX, muitas mulheres participaram ativamente em treinamentos para a guerra e chegaram mesmo a atuar como soldados nos campos de batalha durante a Revolução Mexicana 1910-1917. Entretanto, o Brasil estava muito melhor informado sobre os acontecimentos e os debates na Europa do que em outros países do continente americano.

Notem que, ainda que preparando-se para a luta armada, essas mulheres mantêm o argumento do cuidado com a família, do qual a defesa militar fazia parte e o cuidado com os enfermos também. Era comum a associação das enfermeiras a “anjos” ou a figuras maternais dispensando cuidados à homens que retratados como filhos, irmãos, e pais queridos de outras famílias, nas propagandas para alistamento na Cruz Vermelha.

Mesmo a luta pelo direito ao voto, foi feita sob a visão de que essas mulheres estariam respondendo a uma chamado patriótico, de acordo com a visão de Augusto Comte de que elas são figura chave na concepção de uma nova sociedade. No lema romântico, a exaltação ao amor sacrificial, no mote positivista “o amor como princípio, a ordem por base e o progresso por fim”.

A primeira fase da luta das mulheres por direitos, foi caracterizada pelos mesmos fundamentos. Nas salas de aula, nas campanhas pelo voto ou na preparação para o confronto armado, essas mulheres mantiveram o “amor como princípio”.

 

[colored_box color=”yellow”]  Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados. [/colored_box]

 

 

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