Texto retirado do livro Tempo e Memória de Maria Thereza Marcondes
Com a morte de tio Emílio, a fazenda passou às mãos de Dedé, que era o primo mais velho. Ele teria, nessa ocasião, dezenove anos de idade e nenhuma prática de lavoura, pois fora criado na cidade.
Dedé lutou desesperadamente para que a fazenda sobrevivesse à “queda do café”, mas foi inútil. Ele era muito jovem para tanta responsabilidade, mesmo assim fez o que podê, mas não obteve sucesso, a situação era a pior possível.
Logo em seguida o país entrava numa verdadeira “guerra civil”. São Paulo, inconformado com a ditadura imposta pelo presidente Getúlio Vargas, queria uma Constituição e se revoltou.
Essa “Revolução” conhecida como “Revolução Constitucionalista”, estourou no dia 9 de julho de 1932, empolgando o povo paulista que corajosamente em distinção de classes, pegou em armas para lutar em proal do ideal constitucionalista, isto é, a volta da Nação ao regime da Lei e da Ordem.
Cada vez que íamos à cidade, voltávamos tristes, abendo que rapazes amigos haviam seguido como voluntários, talvez para não mais voltar! Os jornais davam notícias alarmantes sobre a guerra!
Logo depois organizaram em Taubaté o “Batalhão Jacques Félix”, nome do fundador da cidade, em cujo estardante havia uma legenda que dizia: “NON DUCOR DUCO” (Não sou conduzido, conduzo).
Padre Cardoso foi escolhido para capelão desse batalhão e seguiu com ele. Ficamos arrasadas!…
Soubemos depois que o “Jacques Félix” estava travando combate duro com o “Ditatoriais”, em Areias – SP. A guerra continuava desigual, os paulistas sempre com enormes baixas, pois São Paulo lutava sozinho contra quase o Brasil inteiro!
A luta pela Constituição durou de 9 de julho a 9 de outubro.
Mais ou menos pelo mês de setembro, o padre Cardoso ficou muito doente em Areias e voltou a Taubaté. Como o “Colégio Diocesano Santo Antônio”, que era onde ele morava, estivesse fechado, por causa da Revolução, o padre Cardoso foi se estabelecer na fazenda.
Dias depois, apareceram por lá dois soldados paulistas, maltrapilhos e esfomeados. Eram de Taubaté e perteciam a famílias conhecidas nossas. Vinham de Cunha que ficava poucas léguas adiante da Pedra Grande, onde os paulistas estavam travando combate.
Os dois comeram e dormiram em casa, e no dia seguinte seguiram a pé para Taubaté.
Um dia, para surpresa nossa, começou a passar soldado que não acabava mais, na estrada em frente à fazenda.
Padre Cardoso, que conhecia bem tática de guerra, foi indagar deles o que estava acontecendo. Informaram que os Ditatoriais haviam entrado por Parati, já estavam em Cunha, e eles iam combatê-los.
O Quartel-General era na fazenda do Sr. Zeca Grande, a uns trezentos metros de casa, que havia sido abandonada. As famílias do bairro que tinham casa na cidade, começaram a fugir para lá. Temiam os “Cariocas”, como chamavam os da Ditadura de Getúlio Vargas, que em sua passagem arrassavam tudo.
Meus tios acharam melhor que a família toda ficasse reunida na fazenda. Achavam que não deviam abandonar as casas, por iso os homens iam passar o dia nos seus sítios e as mulheres e crianças ficavam na fazenda.
Um ia, padre Cardoso, foi com o Dedé até a fazenda vizinha, onde estava o Estado-Maior dos soldados, para saber se nós poderíamos ficar, sem correr perigo. Chegando lá, seguraram logo o padre, pensando que fosse espião. O que salvou, foi um soldado chamado Djalma Bastos Bilher, que fora aluno do Colégio Diocesano e identificou o padre Cardoso, que havia esquecido os documentos.
Ali estava a “Coluna Caiado” comandada pelo Major Caiado de Castro, com mais de seiscento soldados. O major disse que ficássemos descançados, enquanto os paulistas estivessem resistindo, não haveria perigo.
Passamos dias horríveis, morrendo de medo, éraos nove moças de doze a dezoito anos de idade, que nosso tios não queiram que os soldados vissem.
Estavámos sempre escondidas espiando de longe. Não íamos mais às rezas da capelinha, porque tinha soldado guarnecendo à estrada em todo o trajeto.
Tia Pureza e os homens acompanhavam o padre e para passar pelos soldados tinham que usar a senha que era: “Rio”.
Mamãe, tia Júlia e tia Luísa ficavam cuidando das crianças e tomando conta das moças. A casa estava sempre bem fechada.
Dia e noite, pasavam soldados que iam e vinham, parecendo formigas. O major Caiado de Castro, em vista do padre Cardoso contar que havia muitas mulheres e crianças na fazenda, disse que ficássemos tranquilos. Caso fosse preciso uma retirada forçada, ele nos cederia um caminhão, porque haviam requisitado todos os nossos animais de sela e carga. Ficaram somente o Talismã e a Jerica, que estavam no pasto do fundo e não foram vistos.
Uma noite, estávamos todos reunidos na sala de jantar. De vez em quando, olhávamos pela janela e somente víamos os faróis dos caminhões que passavam pela estrada. Estava muito escuro e os vaga-lumes brilhavam aqui e ali, à volta da casa. Tudo estava em paz. Tudo estava em paz. Então, para distrair começamos a tocar violão e cantar, juntamente com o padre Oswaldo, que também estava na fazenda. Aparecida e eu, cantamos a linda canção daquela época: “Maruska”. Quando terminamos alguém bateu à porta e disse a meu tio que o tenente havia mandado pedir para as senhoritas cantarem de novo, porque aquela música lhe trazia muitas recordações.Ficamos alarmados, não sab[iamos que tinha gente ouvindo lá fora. não havia outro remédio, tivemos que cantar novamente e, quando terminamos, ouvimos muitas palmas.
Meus tios nos fizeram sair da sala e foram convidar os soldados para tomar café, pensando que fossem uns três ou quatro que estivessem guarnecendo a fazenda. Entraram mais de vinte.
Os vaga-lumes que havíamos visto, eram cigarros que os soldados estavam fumando, deitados pela grama na frente de casa.
O tempo passava, e aquele vaivém de sempre. O dia todo, tinha soldado sentado à sombra da paineira e tia Pureza mandava arrebentar peneiras e mais peneiras de pipoca e levar para eles. Quem ia levar era Dilma, que tinha sete anos e ficava conversando. Depois, ela nos contou que os soldados perguntvam: _ ” Você não tem irmãs?” Eles nunca virão ninguém a não ser crianças, então Dilma, com toda ingenuidade ia dizendo : _ ” Tenho sim, tem a Helena, Aparecida, Dirce, Maria Thereza, Dulce,Teresinha, Wanda, Tita, Silvia e a Benedita, filha da empregada” …
Um dia passou um soldado cavalgando o Toni, nosso cavalo de sela. Passou é modo de dizer, porque o toni não passou. Queria entrar no pátio da fazenda e,por mais que o soldado fizesse, o cavalo não passou mesmo e ele teve de “portar”.
Levamos o cavalo à estrebaia e tratamos bem dele,que estava magro e sujo, enquanto o soldado comia alguma coisa.
Todos começaram a especular o soldado, que disse não saber o que havia acontecido, mas tinha recebido ordem de recuar.
Desse momento em diante, começamos a notar que os caminhões cheios de soldados, soldados a cavalo e a pé, somente voltavam, em direção a Taubaté.
Padre Cardoso, que chefiava a família, foi até a estrada perguntar o que estava havendo. Ninguém sabia nada, somente que receberam ordens de recuar, então ele resolveu chegar até o Quartel-General, para saber com o major o que estava acontecendo.
Não havia mais ninguém lá, a casa estava vazia.
Na volta, padre Cardoso, encontrou um tenente que disse: _ “Estamos recuando e os Cariocas vem atrás, arrasando tudo, fujam o mais breve possível e levem o que puder, porque eles não deixam ficar nada”.
Então, padre Cardoso contou que o major prometera dar um caminhão para transportar mulheres e crianças, a que o tenente respondeu: _ “Não tem mais condução, este é o último caminhão e salve-se quem puder!”…
Não havia tempo a perder, não tínhamos cavalos de sela e nem de carga, o remédio era fugir a pé.
Tio Macário mandou matar um porco bem gordo, arrumamos algum mantimento em sacos, fizemos trouxas de roupas e “batemos em retirada”.
Antes de sair, soltamos osporcos do chiqueiro e os pássaros das gaiolas para não morrerem de fome. Dirce chorou na hora de soltar Abdula, o sábia que ela havia criado na gaiola, por saber que infalivelmente ele cairia nas garras de um gato, pois não sabia voar.
Não sabíamos quando voltaríamos!
Lá pelas três da tarde, fechamos a casa e saímos pensando que na volta não econtraríamos mais nada.
Ao chegarmos à estrada, notamos como que uma procissão. O povo todo do bairro “batia em retirada”. Só se via gente com cestas, balaios e trouxas na cabeça, todos apavorados!
O caboclo morria de medo de soldaado, principalmente depois de saber que Paulo Virgínio, havia sido torturado pelos cariocas, até morrer.
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Paulo Virgínio chamava-se, na verdade, Paulo Gonçalves dos Santos, Virgínio era o nome do pai.
Paulo Virgínio era um caboclo que morava no Taboão adiante da Pedra Grande, mas frequentava as festas de igreja em nosso bairro. Lembro-me bem de um detalhe, ele usava, para andar a cavalo, esporar nos pés descalços, e seu cavalo claro, com pintas escurar, chamava-se Tordilho.
Contaram-nos que Paulo Virgínio havia sido aprisionado pelos cariocas que o forçaram a fazer trabalhos mais pesados. Um dia foi levado `a presença do tenente (do qual sei o nome, mas não vou escrever para não manchar este livro), pois este sabendo que Paulo Virgínio conhecia bem aquelas terras,onde ficava o seu próprio sítio, poderia dar informações exatas sobre as posições em que se encontravam os “paulistas”.
O caboclo com o maior desprezo, gritou-lhe: _ “Não!!” … O tenente chamou um outro oficial, dois soldados e um fuzileiro naval, cujos nomes também conheço e mandou torturá-lo..
Deram-lhe chibatadas, feriram-no à baioneta e por fim, atiraram sobre ele um balde de água fervendo que lhe levantou bolhas pelo corpo.
Levaram-no novamente à presença do comandante que perguntou:
_ ” Agora vai ou não dizer onde estão os paulistas”, Paulo Virgínio avançou para ele e gritou: _ ” Não, eu morro, mas São Paulo vence!” …
O caboclo foi levado para fora e mandaram-no cavar a sua própria sepultura. Como ele não tivesse mais força e estivesse demorando muito, um dos soldados falou: _ “Vamos logo com isso, paulista desgraçado está com medo de morrer?”
Paulo Virgínio respondeu quase num gemido: _ “Eu morro, mas srei vingado, São Paulo vence!”
Ouviu-se uma rajada de metralhadora e Paulo Virgínio caiu varado por dezoito tiros pelas costas.
O resto não escrevo porque não aguento mais ! …
O caboclo do Taboão deixou esposa e três filhinhos.
Algum tempo depois, o presidente Getúlio Vargas, tendo tomado conhecimento da monstruosidade do crime, mandou entregar uma certa quantia em dinheiro à viúva de Paulo Virgínio. Esta porém, se recusou a receber. A vida de um caboclo como Paulo Virgínio não tem preço! …
No dia 23 de maio de 1955, seus resto mortais foram levados para o Mausoléu do Ibirapuera.
“Descansa, Paulo Virgínio. Viverás eternamente, na lembrança, e no culto de um povo, porque enquanto houver um coração paulista, viverás!”
(Do livro “Cruzes Paulistas, organizadores: Dr. Benedito Montenegro, Alberto Aguiar Weisskn. Dados compilados por Oswaldo Breta Soares, Editora Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais”)
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Soubemos também que em Areias, onde o batalhão Jacques Félix esteve travando combates, o ditatoriais haviam crucificado um paulista que ficou abandonado à beira da estrada.
Era a matança dos paulista, pelos próprios irmãos brasileiros que se processava tal e qual em 1709, somente com a diferença que naquela época quem mandava era Manoel Nunes Viana, e em 1932, Getúlio Vargas.
Pois bem, nós acabamos fugindo junto do oldados, paulistas, é claro.
A procissão caminhava vagaroa e triste, ninguém tinha vontade de falar.
Algumas vezes padre Cardoso, também a pé, com um enorme chápeu de campanha, passava pela gente e dizia: _ “Depressa, vamos mais depressa, que os cariocas podem nos alcançar”.
Ninguém tinha coragem nem forças para andar mais depressa,estávamos exaustos e o sol era muito forte.
Quando caiu a noite ninguém aguentava mais, estávamos ainda a légua e meia de Taubaté, cansados e com fome.
Padre Cardoso e meus tios conferenciaram um pouco e resolveram, que tomaríamos um atalho e sairíamos na casa de um carreiro muito nosso conhecido, chamado José Miguel, casado com a Rosa, que era lá do nosso bairro. A casa deles ficava longe da estrada principal e no caso dos cariocas passarem, não nos veriam. Assim fizemos.
A Rosa, uma criatura boníssima, no recebeu com muito carinho. A casa deles era de sapé e tinha como quase todas as casas de caboclo, três cômodos: sala, cozinha e quarto.
Ao lado, havia um rancho, onde guardavam o carro de bois. Imediatamente, o Zé Miguel tirou o carro do rancho e passou a cercá-lo com couro de boi, para os homens dormirem. As mulheres dormiriam dentro da casa.
Logo que chegamos, tia Pureza, tia Luísa e tia Júlia, sempre com a boa vontade de Rosa, passaram a providenciar comida.
Os homens fizeram uma fogueira no quintal e ali assaam carne no espeto.
As mulheres fizeram arroz, farofa e café. Logo todos já haviam comido e até estávamos mais animado, parecia uma festa.
Depois o sono foi chegando, cada pessoa foi se acomodando como pôde, as crianças ficaram na única cama que existia, os homens no rancho, deitado em esteiras de taboa e as mulheres foram se acomodando como podiam em trouxas de roupas e sacos de mantimentos.
Eu sempre fui muito observadora e no meio de toda aquela tragédio, olhando tudo em dizer nada, notei alguma coia pitoresca: dulce, por exemplo, não deixou o seu pintassilgo chamado Pitico que comia alpiste em sua mão e depois voltava para dentro da gaiola. Lá foi Dulce, carregando a gaiola, coberta com folhas de mato, para proteger o Pitico contra o sol.
Tia Júlia que criava um frango sem uma das pernas, teve pena de deixá-lo morrer à míngua e levou-o.
Tia Luísa, por sua vez, criava, na cozinha, um marrequinho lindo que ficara em mãe e este ela não deixaria de modo algum.
Lá na casa da Rosa, o Pitico e o “frango perneta”, não deram trabalho, mas o marrequinho pertubou a noite toda.
Como não tivessem apagado a lamparina de queroseneque iluminava a sala, ele não dormiu, e andou grasnando pela casa, o tempo todo. Quando ia se enconstandoem alguma pessoa, esta levava um susto, dava-lhe um tapa, e ele gritava, acordando todo mundo. Era só risada! … O marrequinho foi o toque de alegria no meio de tanta tristeza!
Eu e Inês, minha amiga, estendemos um lençol no chão da cozinha, perto do fogão, deitamos, fazendo o braço de travesseiro, e exaustas dormimos na terra macia, porque era terra de SãoPaulo!
No dia seguinte, ninguém sabia de nada a respeto dos cariocas. O padre Cardoso, o padre Chester e o Dedé, foram a cavalo até a cidade, para saber direito o que tinha acontecido.
Nos ficamos esperando, passou-se o dia e não vinha ninguém. à noitinha, Dedé chegou sozinho, contando que a Revolução havia terminado. Padre Cardoso estava tão cansado e com os pés inchados da caminhada, que ficara na cidade. Padre Chester também ficou, pois precisaria providenciar a reabertura do Colégio Diocesano, do qual era Secretário.
Soubemos que São Paulo fora traído, e, os cariocas haviam tomado outro caminho indo sair em Pindamonhangaba.
Já podíamos voltar, não haveria mais perigo.
Ninguém nos explicou coisa alguma que pudesse amenizar um pouco nossa revolta e nós crescemos detestando a ditadura, Getúlio Vargas, os cariocas, Herculano de Carvalho etc…
Não ficamos abendo que houve um entendimento entre o Estado-Maior das Força Armada e, mesmo que soubéssemos estávamos magoados demais para entender.
Dormimos mais essa noite na casinha da Rosa e saímo no dia seguinte bem cedo.
Fomo recolhendo objetos abandonados pelos soldados à beira da estrada: capacetes de açõ, perneiras, chapéus de lona, sacolas, blusões, pentes de bala, cartas, livros e fotografias.
Chegamos à fazenda, lá pelo meio-dia. Quando avistamos a casa, ela não estava alegre como de costume. Toda fechada, parecia morte e nós voltávamos cansados e tristes, com a derrota de São Paulo.
Depois disso, tudo era tristeza: a morte de tio Emílio, a “guerra”, São Paulo traído, enxovalhado e humilhado.
Aos poucos fomos tomando conhecimento da perda de vários amigos, entre outros:
César Penna Ramos
Benedito Sérgio
Benedito Pereira
José Corrêa
Benedito Egydio Barbosa
José Eleutério dos Santos
Muitos dos nossos animais, os soldados levaram e não entregaram mais. Muita criação morreu e muita fugiu, porque deixavam as porteiras abertas.
Dirce, minha prima de dezoito ano, era cardíaca e devido ao grande esforço com a viagem, piorou e veio a falecer logo depois.
Eu não podia suportar tanta tristeza! Já não era mais criança para me distrair com brincadeiras. Precisava pensar seriamente no futuro meu e de mamãe.
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Texto retirado do livro Tempo e Memória de Maria Thereza Ramos Marcondes. Na obra, a autora relembra sua infância e juventude passadas na Fazenda de São Joaquim no bairro do Mato Dentro do Macuco , zona rural de Taubaté.
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2 Comments
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Maravilhoso tempo de honras. Reviram os heróis revolucionários em seus túmulos a ver São Paulo hoje, amordaçada como nunca e sem voz e sem vida e tomada por estrangeiros subversivos promotores da mais vil desesperança.