1868: uma Princesa devota, uma Santa e um guarda nacional

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Texto de Glauco Santos

No quinto dia de hospedagem na cidade do Visconde de Guaratinguetá, os príncipes decidiram fazer nova visita à capela de Aparecida.

Mais uma vez, histórias pitorescas se misturam com “causos” populares, religiosidade e misticismo. Do lado da tradição oral, chegou até os dias de hoje a narração de uma antiga escrava, Antonieta Maria Portes:

(…) quando a Princesa Isabel, ao ver escravos ajoelhados no meio do cafezal, pedindo a benção, sorriu para eles e deu-lhes moedinhas de ouro enquanto um dos integrantes da comitiva colhia orquídeas roxas, oferecendo-as ao Conde d’Eu que colocou uma delas nas vestes da princesa, outra na sua lapela, gesto esse imitado pelos demais integrantes da comitiva (FABIANO, 1995, p. 2).

Do lado documental, nesta segunda visita dos príncipes à capela, há outra história que contribuiu para a mística envolta da figura da Princesa e da santa encontrada no rio Paraíba do Sul. O jornal O Parahyba (13 de dezembro de 1868) relata o acontecido como “um novo verdadeiro milagre de N. S. da Conceição Aparecida”. A história foi disseminada pelos jornais da capital da província de São Paulo e também da Corte.

O jornal Correio Paulistano (22 de dezembro de 1868) relatou que um guarda nacional que havia sido escolhido para juntar-se às tropas na Guerra do Paraguai tentou por todas as vias legais deixar de fazer parte do quadro de soldados de guerra. Porém, com a urgência do recrutamento em massa, o delegado de Lorena, José Vicente de Azevedo, não hesitou, mandou prender e algemar o guarda, enviando-lhe à pé até São Paulo. Quando passou por Aparecida, o guarda pediu que parassem para que ele orasse na capela. Neste mesmo instante em que estava ajoelhado orando, adentrou ao templo a Princesa Isabel, o Conde d’Eu, o Visconde de Guaratinguetá e os poucos membros da comitiva que os acompanhavam nesta rápida e não planejada visita. O guarda acorrentado jogou-se aos pés da princesa, implorando a reparação pela injustiça que estava sofrendo, solicitando que lhe fossem tiradas as algemas. A Princesa Isabel então pediu ao Conde d’Eu que ordenasse a retirada das algemas. Este logo se aproximou do tenente que acompanhava o guarda preso e indagou: “Que fez este homem? É assassino, é criminoso?” (O Parahyba, 13 de dezembro de 1868). O tenente então respondeu que se tratava de um guarda nacional designado. Surpreso, o Conde exclamou: “um guarda nacional designado! Pois conduz-se, assim, algemado um guarda nacional n’um paiz livre! Oh! sr. tenente, mande tirar estas algemas; o guarda nacional irá como homem de bem” (O Parahyba, 13 de dezembro de 1868).

Dirigindo-se ao guarda, o Conde afirmou que não poderia libertá-lo de sua missão designada, pois “não tinha para isso direito, e que era preciso respeitar as leis, acima de quem ninguém está” (O Parahyba, 13 de dezembro de 1868). Entregou cerca de 10 mil réis ao guarda para suas despesas no percurso até São Paulo e mandou o tenente tirar-lhe as algemas, quando a Princesa Isabel observou seus pulsos roxeados, ficando consternada.

Após o incidente, dentre outros compromissos com a elite local, na noite do dia 13, puderam desfrutar de mais um espetáculo teatral, quando assistiram à companhia dramática local representando “o drama em dois atos de Braz Martins, ‘Abençoada diabrura’, e uma cena cômica, ‘A jocosa comedia’, da autoria de Manoel Martins” (MOURA, 2002, p. 110). Nos intervalos entre uma peça e outra, o ex-escravo e trombonista Antônio Joaquim da Silva Ramos tocou com os pés uma variação à sua escolha, agradando novamente aos olhos e ouvidos da Princesa Isabel e do Conde d’Eu (O Parahyba, 13 de dezembro de 1868). Talvez Antônio trombonista fora o cidadão, fora do círculo da elite guaratinguetaense, que mais colheu proveitos positivos para si nessa visita dos príncipes à cidade.

Depois de longa estada, finalmente pelo dia 14, às 5 horas da manhã, o casal deixou Guaratinguetá rumo à Pindamonhangaba, fazendo uma pequena pausa na fazenda do dr. João Marcelino de Souza Gonzaga.

A Princesa Isabel e seu marido, Conde d’Eu deixavam a cidade, mas as marcas de suas presenças ficavam. Na ata da Câmara de Guaratinguetá de 9 de janeiro de 1869, o Padre Benedito Teixeira da Silva Pinto indicou que os nomes de várias ruas fossem alterados. A rua Feijó até o largo da igreja matriz começou a ser denominada de rua Conde d’Eu, a outra parte da rua Feijó, começando da casa do Visconde até a ponte do rio Paraíba, passou a ser chamada de rua Princesa Isabel, e a rua 7 de abril  de rua da Imperatriz. Pelos nomes antigos das ruas percebe-se que a cidade de Guaratinguetá respirava ares liberais antes da passagem da Princesa Isabel, mas assim como o Visconde de Guaratinguetá que em 1852 trocou o partido liberal pelo conservador, a cidade também passava agora a ganhar contornos conservadores.

O esforço do Visconde parece ter surtido o efeito esperado. O teatro da monarquia havia sido implantado, interpretado por seus personagens principais (os príncipes e as autoridades locais) e causado encanto nos espectadores. Isto fica evidente na análise do articulista do jornal O Parahyba: “O que é verdade incontestável é que o dia 7 de Dezembro de 1868 ficará indelével na memória dos habitantes d’esta cidade, e de todos quantos fruíram tão grandioso, e arrebatador espetáculo, de todos que gozaram da vista tão encantadora e deliciosa d’essa bela cena”.

Altar construídos por escravos em homenagem a Princesa Isabel

Aqueles dias de júbilo, como descrevia o articulista do O Parahyba (13 de dezembro de 1868), serviam para tocar os corações e mentes dos que a tudo assistiam, transformando a imagem do monarca ou da princesa em uma figura mítica, suprema, dotada de certos atributos que justificavam todo aquele fausto espetáculo. Prova disso está na mística até hoje envolta entre a Princesa Isabel e a santa de Aparecida. O que dizer sobre este último encontro entre os príncipes Imperiais e o guarda nacional designado de Lorena? Mesmo caráter de milagre foi dado a um relato da tradição oral onde conta-se que, nessa mesma viagem de 1868, um escravo algemado descia a ladeira que levava à capela de Aparecida quando se encontrou com a Princesa Isabel. Ele ajoelhou-se e pediu clemência, sendo liberto das algemas. Nada de se estranhar a semelhança que há nesses dois relatos com o chamado “milagre da corrente”, quando em 1850, um escravo de nome Zacarias teria fugido de Curitiba, mas foi preso em Bananal. Ao passar por Aparecida, pediu ao oficial que o acompanhava, licença para orar. E diante do altar, rezando, a corrente se partiu (CAMARGO, 1970, p. 294). Começava-se a construir a imagem de “Redentora” que a Princesa Isabel ganharia alguns anos depois. A visita dela em Guaratinguetá (e na capela de Aparecida) cumpria seu objetivo de alimentar a alma e o imaginário popular.

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Referências bibliográficas

CAMARGO, C. B. R. Passagem da Princesa Isabel em Guaratinguetá e Aparecida. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Paulista, vol. LXVII, São Paulo, 1970.

FABIANO, M. I. M. A Princesa Isabel em Guaratinguetá. Guaratinguetá, 1995.

MOURA, C. E. M. O Visconde de Guaratinguetá: Um Titular do Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Studio Nobel, 2002.

Correio Paulistano, 22 de dezembro de 1868.

O Parahyba, 13 de dezembro de 1868.

Ata da Câmara de Guaratinguetá, 9 de janeiro de 1869.

[box style=’info’] Glauco de Souza Santos

glauco
É graduado pela Universidade de Taubaté, Mestrando em História Social pela Universidade de Campinas. Trabalha como Professor de História em São José dos Campos – SP.

 

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