O CRUZEIRO DO FIRMINO

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Por Lia Carolina Prado Alves*

No Brasil, a presença de Cruzeiros nas cidades é uma constatação comum. Esse símbolo do cristianismo é encontrado esparramado ao longo do território brasileiro, cobrindo regiões de Norte a Sul, de Leste a Oeste.

O primeiro Cruzeiro do Brasil foi erigido no dia 1º de Maio de 1500, quando aos pés de uma grande Cruz foi rezada, por Frei Henrique Soares, a 2ª missa no Brasil, simbolizando a posse da nova terra. Esse momento foi registrado magnificamente por Vítor Meireles na sua famosa tela “Primeira Missa”, mas que, de fato, representa a segunda missa rezada no Brasil. (Museu Nacional de Belas Artes/RJ)

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“Primeira Missa” – Vítor Meireles (M.N.B.A./RJ)

Daí em diante tornou-se um comportamento comum do povo brasileiro construir cruzeiros em memória de algum fato que, sensibilizando a opinião pública,saísse fora do cotidiano do dia-a-dia.

Taubaté, cidade das mais antigas do Brasil, herdou essa tradição colonial e temos espalhados, pela mancha urbana, vários Cruzeiros – e todos eles com suas histórias ou estórias. Com o passar do tempo essas histórias/estórias foram sendo esquecidas e, hoje, quase não se sabe mais a razão da existência desses Cruzeiros.

Partindo da premissa que Museus são instituições destinadas a buscar, conservar, estudar e expor a História e Memória de um povo podemos afirmar e provar que a cidade de Taubaté é, em si e por si, um Museu ao céu aberto.

Para tanto vamos fazer uma pequena explanação sobre alguns pontos da cidade de Taubaté onde são conservadas história e memória do povo taubateano. Vamos começar contando a história de seus Cruzeiros – e o primeiro deles é o CRUZEIRO DO FIRMINO.

Cruzeiro do Firmino na Rua Gastão Câmara Leal, em frente ao Convento de Santa Clara, aos fundos do atual supermercado Pão de Açúcar. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Cruzeiro do Firmino acima do oratório na Rua Gastão Câmara Leal, em frente ao Convento de Santa Clara, aos fundos do atual supermercado Pão de Açúcar. (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

Conta-nos Emílio Amadei Beringhs em “Lendas e Tradições” (1974) que nas imediações da Praça Monsenhor Silva Barros, onde antigamente havia o campo de futebol do Esporte Clube Taubaté, havia um tosco cruzeiro onde as pessoas tinham por hábito acenderem velas e rezarem. Esse cruzeiro foi registrado em uma foto, provavelmente do início do século XX, onde a região aparece como um grande terreno, um tanto alagado, devido a presença do córrego do Saguiru, hoje completamente canalizado. Mais tarde esse cruzeiro foi transferido junto ao Convento de Santa Clara, novamente deslocado junto ao muro de divisa do antigo Asilo e, pela terceira e última vez foi instalado na Rua Dr. Gastão Câmara Leal, onde se encontra até hoje. Atualmente, esse cruzeiro está quebrado e depositado na parte superior de uma reentrância feita no muro que faceia a calçada da Rua em questão. Nesse retângulo escavado no muro encontramos várias imagens, ou pedaços de imagens quebradas, deixadas pelo povo, e suas paredes estão completamente enegrecidas pela fuligem das inúmeras velas que aí são acessas todas as segundas-feiras, dia consagrado à devoção das Almas do Purgatório.

Atualmente, inúmeras pessoas frequentam o lugar, acendem velas e rezam, mas sem dúvida, não sabem a origem desse pequeno oratório a céu aberto.

Detalhe do oratório (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Detalhe do oratório (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

Qual seria a origem desse cruzeiro? O que aconteceu ali de tão inusitado que há tanto tempo é perpetuado como um local de devoção e rezas?

Ali foi cruelmente assassinado um “moço vigoroso, saudável e sempre bem disposto” chamado Firmino.

Firmino era um dos escravos do Coronel Antônio Venâncio, proprietário da fazenda dos Palmares. Como escravo prestativo,não rejeitando serviço e sempre bem disposto, Firmino soube, pouco a pouco, conquistar o bem querer de seu dono. Entretanto,à medida que adquiria a confiança e admiração de seu proprietário, ia conquistando também o ódio que a inveja despertava no capataz Pedro.

Quando Carlinhos, único filho do Coronel Antônio Venâncio, alcançou a idade para iniciar seus estudos primários seu pai resolveu trazê-lo para a Cidade e escolheu Firmino para acompanha-lo. Essa escolha só fez aumentar o ódio do feitor Pedro.

Cruzeiro do Firmino (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Cruzeiro do Firmino (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

O tempo passava, mas não arrefeçava o ódio de Pedro para com o preto Firmino. Assim, numa noite de Lua Nova, quando não havia o luar que normalmente iluminava a cidade, Pedro, de tocaia, esperou a passagem do escravo por aqueles lados da estrada do Cavarucangüera. Quando Firmino se aproximou, Pedro, às pauladas, deixou-o ensanguente e morto no leito da estrada. Passado seu momento de fúria Pedro, tal qual Judas, foi atacado por um remorso imenso, mas nada mais pode fazer a não ser se entregar ao Delegado e preparar-se para pagar pelo seu crime execrável.

Cruzeiro do Firmino por outro ângulo (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)
Cruzeiro do Firmino por outro ângulo (Angelo Rubim/Almanaque Urupês)

“No local onde fora massacrado o preto Firmino, almas piedosas colocaram uma cruz, ao redor da qual acenderam velas.”

E assim é até hoje. Pessoas acendem suas velas, rezam suas orações sem saber o porquê da existência desse cruzeiro: o CRUZEIRO DO FIRMINO”que simboliza o bem e a virtude” – qualidades que faziam parte da alma daquele escravo.

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* É paleógrafa no Arquivo Dr. Felix Guisard Filho, pertencente à Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté (DMPAH)

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