Fiquei Invisível!

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José Diniz Junior

Fui alfabetizado na escolinha da professora Dona Fafá – Faraídes Alvim de Moraes. Quando ela não dava aula, era substituída por sua filha Mariazinha.

Fui aprovado no exame de admissão e fui para o Ginásio São Miguel dos padres Betharramitas.

Nunca fui nenhum Einstein, mas desde cedo aprendi coisinhas simples: respeitar os mais velhos, dizer bom dia, com licença, obrigado. Não custa lembrar que minha mãe Jupyra mantinha sempre ao alcance das mãos, um chicotinho de jockey, apelidado de Gualicho em homenagem a um cavalo famoso, que servia para apaziguar os ânimos de seus filhos. Menino sapeca que fui, raro era o dia em que Gualicho não cavalgava em meu lombo, se me faço entender. Como você não sabe, nasci num mês de agosto, quando terminou a Segunda Guerra Mundial, quer dizer, sou um cidadão do século passado. Convivi com coisas simples: em vez de piscina, eu nadava no rio da Chácara Murilo Costa,estrada da Fazendinha.  No armazém de meu pai tinha uma charrete de entregar compras. O que me dava o direito de ir buscar o cavalo no pasto e voltar cavalgando, em pelo. Como a televisão não tinha nascido, eu curtia os circos que se instalavam perto da casa do prefeito Mario Galvão, com shows ao vivo, sentado em arquibancadas de madeira. Político ainda não era sinônimo de Irmão Metralha. Religião, apenas duas: os católicos e nós, os protestantes. “Igrejas de fundo de quintal”, com “pastores” tão mentirosos quanto inscrição de lápide, nem pensar. E eu estudava em colégio de padres. Sem rancores. A mulher era mais respeitada, nenhuma delas andava na rua mostrando tudo que só se mostrava na lua de mel, uma cerimônia pré-histórica. Publicidade era “reclame”. Problemas de saúde? Run Creosotado, Regulador Xavier, Pílulas de Vida do Dr. Rossi, Auris Sedina. Médico tocava o paciente, examinava a língua, media a pressão. Em lugar de congestionamento de veículos, havia tropas de burros (de quatro patas) carregando jacás pelas ruas. Nos ensinavam que havia apenas dois sexos. Veados? Apenas dois ou três. Mulher da “sapataria progresso” (se é que havia). Todos discretíssimos. Para falar em telefone, tinha que pedir uma ligação e voltar mais tarde. A gente colecionava coisas como: maços de cigarro vazios, lápis de publicidade, chaveiros, selos postais, as chamadas traquitandas.  Os galãs de plantão (pasme) andavam com pentes e até espelhinhos no bolso para os retoques finais antes do ataque. Pausa: pelo exagero de um creme que eu usava nos cabelos, ganhei no ginásio o apelido de “representante da Glostora” – que era a marca do creme. Os mais tímidos dedicavam música no serviço de alto falante da Festa da Santa Casa, ao redor das barracas.  “Alguém, oferece a alguém, e esse alguém sabe quem”.

E toca bolero. O terrorista islâmico Al-Zheimer não havia nascido. Todo lelé da cuca era chamado de “caduco”. Na primeira sessão do Cine Regnier a paquera corria solta. Além do footing depois da sessão, tinha também o desfile das moças na estação ferroviária nas chegadas dos trens. Não se podia perder nenhuma chance. Transgredir o nono mandamento não era tão escancarado. A palavra motel nem tinha no dicionário. A única modalidade esportiva que sobreviveu ao tempo, é aquela que vem engarrafada, com rótulos variados.

Esse era o meu mundo em Passa Quatro, simples e descomplicado.

Hoje quando vejo no espelho minhas rugas e meus cabelos grisalhos, pego meu treisoitão para encontrar o iluminado inventou a expressão “melhor idade”. Uma pinoia. Em Taubaté, 300 mil habitantes, calçadas estreitas, já tentaram passar por dentro de meu corpo, como se eu não existisse. Idosos são atropelados por ciclistas como se fosse um torneio, por toda parte.

Em festas de jovens, só falta alguém transpassar meu corpo para apanhar um copo e provar: com os cabelos grisalhos, finalmente fiquei invisível. O glória.

José Diniz Jr, 69, é editor do jornal Matéria Prima e autor do livro “Diário da Tranca”

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