Museu como lugar de memória ou como lugar de estar?

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Texto de Rachel Duarte Abdala *

Museu. Há quem goste, há quem deteste. O fato é que é muito difícil passar imune a ele. Mesmo aqueles, e não são poucos, que nunca estiveram em um ou que nem sabem que eles existem estão neles representados, pois o museu é o lugar de memória da coletividade, ele tem o papel de salvaguardar fragmentos de um período, uma época, uma dada temática, para que as gerações futuras possam conhecer o que foi a sua sociedade. É bem verdade que existe hoje uma variada gama de tipos de museus (científico, pedagógico, histórico, artístico ou de Belas Artes, entre outros), mas a sua função social como uma instituição conectada ao mundo contemporâneo também está passando por um intenso processo de ampliação.

Até pouquíssimo tempo, e mesmo agora muito fortemente apesar das ações na contramão desse senso comum cristalizada, o museu era visto como uma vitrine, um lugar de contemplação, o que o historiador francês Pierre Nora denominou de “lugar de memória”. Mas para além de se constituir como um lugar que marque como um farol a história, nas suas mais variadas dimensões, hoje os principais desafios do museu e da própria sociedade, se concentram no sentido de aproximar o museu do público e para que os visitantes o considerem como um espaço dinâmico e seu. Assim, há a tendência, cada vez mais intensa, de conceber o museu como uma questão social.

Paul Valéry (1871-1945)
Paul Valéry (1871-1945)

O filósofo, escritor e poeta francês Paul Valéry manifestava no início do fremente século XX o que ele qualificou como “O problema dos museus”. Para ele o grande problema era esse: não só trazer o público para dentro do museu, mas que esse público gostasse do que visse e se sentisse “em casa”, ou seja, que o museu se tornasse para ele algo familiar, que houvesse reconhecimento e identificação. Valery procurou descrever a sua angústia, que não era exclusiva dele, em relação ao museu, nos diz o que sentimos: “Não morro de amores pelos museus. Alguns deles são admiráveis, mas nunca deliciosos. As idéias de classificação, de conservação e de utilidade pública, que são justas e claras, têm pouca relação com as delícias. No primeiro passo que dou em direção às coisas belas, uma mão me tira a bengala, um aviso me proíbe de fumar. Já paralisado pelo gesto autoritário e pelo sentimento de opressão, entro numa sala de escultura onde reina uma fria confusão. Sou tomado por um horror sagrado. Meu passo se faz tímido. Minha voz se transforma e se coloca um ponto mais alta que na igreja, mas um pouco menos forte do que ela soa no ordinário da vida. Logo já não sei mais o que vim fazer nestas solidões de cera, que têm alguma coisa de templo e de salão, de cemitério e de escola… Vim me instruir, buscar meu encantamento, ou cumprir um dever e satisfazer as conveniências?”

A questão é justamente essa: o que eu vou fazer no museu? A “porta de entrada” mais freqüente aos museus no Brasil é pela escola, por esse motivo, muito frequentemente a visita ao museu é associada à idéia de instrução.

Hoje se fala muito em turismo cultural e esse engloba prioritariamente os museus. Os grandes museus como o Louvre, o Prado, o Hermitage, o Metropolitan, e muitos outros figuram em destaque nos guias de viagem. Paradas obrigatórias. Mas qual a função dessa visita? É lamentável que a grande maioria das pessoas que visita o Louvre tenha interesse quase que exclusivo em ver de perto a famosa Mona Lisa. E os outros mais de 380 mil itens e 35 mil obras de arte de exibição permanente que constitui o seu acervo?

É preciso entender o processo histórico de constituição dos museus e o lugar que a História ocupa nas sociedades para se compreender essa situação. Os museus foram criados pelas elites e para o seu próprio deleite e auto-afirmação, com acesso privado. Só com a influência dos enciclopedistas franceses, os museus passaram a ser apresentados para a população e, em 1793, foi fundado o primeiromuseupúblico, na França – o Museu do Louvre, reunindo coleçõesacessíveis a todos, comfinalidaderecreativa e cultural. No Brasil, os museus surgiram no século XX, com algumas exceções, de museus criados no século XIX.

Museu do Louvre. Foto: Benh LIEU SONG
Museu do Louvre. Foto: Benh LIEU SONG

“Quem gosta de museu é coisa velha.” Essa foi a idéia que se cristalizou. Assim, além de lugar inacessível o museu também recebeu a pecha de lugar enfadonho. Reverter isso é o desafio atual dos museus.

Na música “O tempo não pára”, Cazuza, associa a dinâmica do tempo com o museu e o que ele representa como espaço de memória.

“Eu vejo o futuro repetir o passado
Eu vejo um museu de grandes novidades
O tempo não para
Não pára, não, não pára”.

Acervo do Museu Histórico de Taubaté. "O Problema Social em Taubaté", de autoria do Mestre Justino
Acervo do Museu Histórico de Taubaté. “O Problema Social em Taubaté”, de autoria do Mestre Justino

Por princípio, todo museu tem grandes novidades dependendo da sua disposição em enxergá-las. Também existe a noção de que museu é para ver uma vez só. E essa é outra percepção que vem sendo revertida: museu é lugar para estar. Cada vez que você for ao museu você pode estar diante de uma novidade. E de novidade em novidade é possível encher os olhos e renovar a relação com o passado e, no limite com nós mesmos. Você não precisa aprender toda vez que vai ao museu, pode simplesmente ter o prazer de estar ali. Diante do início das férias essa parece ser uma boa reflexão, pois, há muitas pessoas que ainda resistem à perspectiva de eleger o museu como um espaço de lazer.

Hoje os museus também estão investindo na realização de eventos, no âmbito de ações culturais e na organização de exposições, permanentes e temporárias, que sejam interativas, ou seja, com as quais o público pode efetivamente interagir concretamente. Um exemplo bastante significativo é o Museu da Língua Portuguesa, instalado na Estação da Luz em São Paulo.

Análise dos documentos do Arquivo Histórico de Taubaté. Na foto José Cláudio Alves da Silva (autor das efemérides taubateanas), Lia Carolina Prado Alves, Ana Di Lorenzo e Maria Morgado de Abreu
Análise dos documentos do Arquivo Histórico de Taubaté. Na foto José Cláudio Alves da Silva (autor das efemérides taubateanas), Lia Carolina Prado Alves, Ana Di Lorenzo e Maria Morgado de Abreu

O museólogo taubateano Paulo Camilher Florençano proferiu uma palestra, em 1977, intitulada “Sobre o velho e o novo conceito de museu”, na qual avalia as condições técnicas dos museus. Discurso de autoridade, porque nessa altura já havia sido o responsável pela instalação de diversos museus nos estados de São Paulo e de Minas Gerais. De acordo com Florençano o visitante comum tinha poucos instantes de distração, de matar a curiosidade, de se impressionar sem grandes conseqüências.

A questão não é mais contabilizar em quantos museus você foi mas qual eles é a sua casa. Em qual deles você se sente bem e no qual gosta de estar.

E como o tempo não pára e você já terminou de ler esse texto aproveite agora um pouco do seu tempo livre em algum museu. Você sabia que proporcionalmente em relação à densidade demográfica Taubaté é a cidade do interior do Estado de São Paulo que tem mais museus? Que o Museu Histórico Pedagógico Monteiro Lobato, o sítio do Pica-pau Amarelo é um dos museus mais visitados do Estado? Ainda vale a máxima: “Eu amo o que conheço”. Assim, antes de se sentir bem você precisa conhecer os museus e, principalmente os que estão aqui pertinho de você e que dizem respeito diretamente à sua cultura.

Dúvida, questão, crise? Com tantas opções a crise agora é decidir qual museu receberá a sua visita em primeiro lugar para você poder escolher em qual deles gosta de estar.

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*Rachel Duarte Abdala é Doutora em História pela USP e professora de Teoria da História na Universidade de Taubaté

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