A compreensão da escrita antiga: Paleografia

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O contato diário com os documentos e com os pesquisadores que ao arquivo se dirigem nos traz boas experiências e também aprendizados. Todos os dias aprendemos algo novo ou novos questionamentos surgem e é neste momento que vamos em busca de respostas. É muito comum algum pesquisador que está no início de sua pesquisa e nunca teve contato com um documento manuscrito, ao se deparar com algum, fica completamente deslumbrado ou no mínimo surpreso, tem medo de tocar, e as perguntas que expressam essa surpresa surgem: “Está escrito em português?”, “mas como vou ler isso?”, “alguém consegue decifrar?”.

Essa prática de ler manuscritos antigos é uma ciência que, além de estudos, requer muita prática e mesmo assim muitas dúvidas sempre estarão presentes, pois se trata da escrita de outros tempos, época em que poucos sabiam escrever. Até o século XVI, na Europa, somente uma pequena parcela da população era letrada, pois o monopólio de ensino pertencia à Igreja. Eram nos mosteiros cristãos que o conhecimento era preservado da sua expansão. Isto porque na Idade Média, não havia imprensa, por isso todo o processo da escrita e a composição de livros eram feitas nos mosteiros, pelos monges copistas. Segundo Maria José de Azevedo Santos, era no chamado scriptorium que o monge escrevia e copiava livros. Poderia ser qualquer lugar onde “o monge com pergaminho, pena e tinta podia escrever” (SANTOS, 1994, p.4). Santos ainda afirma que havia alguns monges que não sabiam escrever, embora todos pudessem ler. Isto porque para as necessidades litúrgicas, os monges precisavam unicamente ler, mas não escrever.

Monge redige livro no scriptorium

A necessidade de comunicação e de registros, como em todo lugar, ocorreu também no Brasil desde sua descoberta. São nestes registros que obtemos informações da época, assim como a forma escrita que utilizavam e que nos possibilitam, graças a sua preservação e divulgação, o conhecimento de tempos vividos. Documentos esses que causam tanto espanto e admiração ao primeiro contato.

A ciência que estuda a escrita destes documentos históricos é a Paleografia. Sua etimologia procede do grego Palaios=antigo; Graphien= escrita, portanto, Paleografia é o estudo da escrita antiga. Vera Lúcia Costa Acioli define Paleografia sendo:

 “Ciência que lê e interpreta as formas gráficas antigas, determina o tempo e o lugar em que foi redigido o manuscrito, anota os erros que possa conter o mesmo, com o fim de fornecer subsídios à História, à Filologia, ao Direito e a outras ciências que tenham a escrita como fonte de conhecimento” (ACIOLI, 1994, p.5).
A Paleografia, portanto, tem o papel de interpretar os documentos através da escrita, determinando o tempo e o local de sua redação através de exame sistemático.

Cesar Nardelli Cambraia também define a Paleografia com duas finalidades. A finalidade teórica “manifesta-se na preocupação em se entender como se constituíram sócio-historicamente os sistemas de escrita;” e também a finalidade pragmática que se mostra “na capacidade de leitores modernos para avaliarem a autenticidade de um documento, com base na sua escrita, e de interpretarem adequadamente as escritas do passado” (CAMBRAIA, 2005, p.23). Dessa forma, a análise dos textos manuscritos precisa de muita atenção e técnica a partir dos estudos paleográficos, para assim evitar possíveis erros de leitura ou interpretação.

A escrita pode ser encontrada registrada em diversos suportes, mas vale ressaltar que a Paleografia estuda a escrita nos suportes como Ubirajara Dolácio Mendes salienta “são apenas aqueles vazados sobre matéria mais facilmente perecível e de fácil transporte, como o papel, o pergaminho e as tabuinhas enceradas” (MENDES, 2008, p.18). São suportes também o papiro e o tecido.

Trecho de documento do Arquivo Histórico Dr. Felix Guisard Filho.

Ler um documento antigo abrange certas dificuldades, como o tipo da letra, a formação das palavras e frases, o estado do papel e da tinta. Na ocasião da leitura dos documentos temos que refletir também sobre as condições do copista no momento em que o redigiu, ou seja, o que ocasionou certa mudança na escrita. Segundo Barbara Spaggiari e Maurizio Perugi “além dos de tipo histórico, geográfico ou social, mudanças podem intervir por causa da idade, do cansaço, da pressa com que o copista escreve, duma doença que faz mais débil e incerto o ‘ductus’[1], etc” (SPAGGIARI; PERUGI, 2004, p.18). É somente com estudo e pratica constante e contato com os documentos que o entendimento e a posterior transcrição poderá ser efetivada.

A relação entre a Paleografia e a História é muito evidente, pois ao longo da leitura, transcrição e edição dos manuscritos, é impossível para o pesquisador não se interessar pelo conteúdo e pela história de cada texto.  Os conhecimentos necessários para ler e transcrever manuscritos dados pela Paleografia possibilitam para a Filologia estudar toda a evolução, particularidades e origens da escrita portuguesa utilizada no Brasil colonial.

Ler documentos de outras épocas e entender como se comunicavam, decifrar palavras que hoje não utilizamos mais faz da Paleografia um instrumento de extrema importância para o pesquisador. Isso me faz lembrar de um Seminário organizado pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo em 2008, com o tema “Paleografia: a arte de decifrar”. E é por meio desta arte da decifração da escrita antiga que novas pesquisas e descobertas vão sendo desenvolvidas.

Referências bibliográficas:

ACIOLI, Vera Lucia Costa. A Escrita no Brasil Colônia: uma guia para leitura de documentos manuscritos. Recife: Editora UFPE/ Fundação Joaquim Nabuco/ Massangana, 1994.

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MENDES, Ubirajara Dolácio. Noções de paleografia. 2.ed. São Paulo: Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2008.

SANTOS, Maria José de Azevedo. Da Visigótica à Carolina. A escrita em Portugal de 882 a 1172 (aspectos técnicos e culturais). Lisboa: Editora Fundação Calouste Gulbenkian, 1994.

SPAGGIARI, Barbara & PERUGI, Maurizio. Fundamentos da Crítica Textual. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.


[1] ductus: ordem de sucessão dos traços da letra.

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Amanda Valéria de Oliveira Monteiro é formada em História pela Universidade de Taubaté. Mestranda em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Trabalha no Arquivo Histórico Municipal Felix Guisard Filho com documentos datados a partir do Século XVII.

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