Nosso futebol em risco

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Por Renato Teixeira

Poucos conseguiram enxergar o futebol brasileiro como ele realmente é.

Nelson Rodrigues foi quem primeiro percebeu que o complexo de povo subdesenvolvido havia contaminado o nosso futebol a ponto de nos impor derrotas nitidamente psicológicas.

Alguns outros, como o folclórico Nenê Prancha e João Saldanha, eram a voz do povo definindo nosso estilo de jogar bola. Em nenhum outro país do mundo poderia haver alguém como o jogador Didi que descia o morro fazendo embaixada com uma bolinha de pingue pongue e, dizem os mais apaixonados, calçando tamancos!

Muitos cabeceadores treinados na Alemanha ou na Polônia com certeza conseguiram ser mais eficientes do que Dadá Maravilha. O que diferenciava o nosso cabeceador, entretanto, era sua virtude de “flutuar como um beija flor” ou “ficar parado no ar” como um helicóptero. A diferença do nosso futebol para o resto do mundo era essa: nossos jogadores raciocinavam no espaço da magia, da invenção pura e simples.

Assim como havia esse que “parava no ar”, havia outro com as pernas nitidamente curvadas para um lado só, que não conseguia ser aprovado nem em exames psicotécnicos e que, às vezes, sequer sabia o nome dos adversários, mas definia jogos com a graça de um passarinho. Garrincha, para mim, mais que um jogador, foi um mestre da autoajuda. Seus dribles eram verdadeiras lições sobre fórmulas e soluções para os problemas da vida. Quantas vezes tive que usar sua técnica para solucionar questões do dia a dia.

Didi (Manchete Esportiva)
Didi (Manchete Esportiva)

Assim, misturando defeitos, virtudes e dúvidas do povo, o futebol foi ganhando a nossa cara até se transformar na maior expressão cultural da Nação!

Lindo saber que uma força surgida no meio do povo se transformou nisso tudo, criou mitos e consagrou ídolos. Quando Pelé surgiu, não foi apenas o primeiro gênio da bola internacional a aparecer no planeta globalizado, foi também uma verdadeira revolução social que transformou o jogo de futebol no maior espetáculo da terra.

Para mim, não vale qualquer comparação técnica entre Pelé ou qualquer outro que seja, pois só ele conseguiu mudar definitivamente os rumos do lazer da humanidade. Todos os outros esportes que hoje repercutem mundialmente se espelham nessa expectativa deliciosa de assistirmos o improvável acontecer através dos gênios das modalidades. É isso tudo que devemos a Pelé. Como comparar um sujeito desses com os outros mortais que o sucederam? Os Ronaldos, Romários, Messis e Maradonas são todos, definitivamente, apenas ministros do rei.

Pelé uniu os povos da terra em torno de uma maneira graciosa de jogar bola que brotou do “jeito de ser” do povo brasileiro, sempre chegado num gingado, num chinelo, numas astúcias. Tudo ali, nos limites do possível ampliados pelos recursos populares como o tal do “jeitinho” e do “deixa pra lá”. Infelizmente, é toda essa cultura futebolística evoluída que o novo mercado da bola está tirando do povo brasileiro.

Garrincha (Revista do Esporte)
Garrincha (Revista do Esporte)

Nosso País vem renegando a si mesmo desde que o populismo achou que para existir era necessário eliminar os nichos do conhecimento avançado. Iniciamos um retrocesso medonho onde a cultura e a civilização foram se danar. Logicamente que essa danação acabou infectando também o consagradíssimo futebol brasileiro.

Tudo começou na copa de 66: a “corja nacional” formada pelos incultos da época voltou da Inglaterra achando que seria necessário abrir mão do nosso jeito inventivo de jogar porque a força bruta dos bem nutridos europeus iria nos liquidar. Mesmo sabendo que todos os nossos títulos foram conquistados fora de casa diziam por aí que ou ficávamos musculosos ou a nossa inventividade não valeria um prego velho.

Muitas e muitas vezes já havíamos feito gato e sapato dos “cinturas duras”. Como ele não tinham campinhos, favelas e tamancos como aqui, resolveram investir na massa muscular.

Não somos mais o País do Tom Jobim; hoje, para o mundo, somos o país do Teló (sinto até uma dor na alma quando penso nisso. Nada contra o Teló, pelo amor de Deus, que é um sujeito trabalhador).

Até o grande Tostão dia desses em sua coluna pediu a saída do Neymar para que ele possa aprender corretamente o jogo da bola, exatamente esse que o Barcelona pratica e que a crônica exalta perigosamente; o tipo de jogo que privilegia a posse de bola acima de tudo e é egoísta e egocêntrico. É o mesmo estilo de toque de bola que o time de futebol de salão de São José usava para derrotar o salonismo maravilhoso do TCC jogado e criado pelo grande Marta Rocha e seu fiel escudeiro Celinho, todos sob o comando do magnífico Gino Consorte.

Arrael e Marta Rocha em conversa no TCC. (Almanaque Urupês)
Arrael e Marta Rocha em conversa no TCC. (Almanaque Urupês)

Não se iludam. O futebol vai virar apenas um aplicativo para você jogar no metrô, voltando para casa. Os estádios se transformarão em grandes templos religiosos patrocinados pelas curas milagrosas e em supercasas de espetáculos populares, patrocinadas pelo pessoal da cerveja e da telefonia celular.

É triste ver esse mar de gente achando que o Neymar precisa ir aprender jogar bola na Europa!

O Brasil é um pais suicida!

 

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Publicado originalmente na edição 588 do Jornal Contato

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