Usos e costumes

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Texto  de Emílio Amadei Beringhs

Janeiro de 1970

Quando começamos a escrever crônicas, revisando o passado de nossa gente, isso lá por volta de 1946, para ajudar programas de rádio organizados à base daquelas bonitas melodias de um passado remoto, melodias que ainda hoje sacodem os nervos da gente contemporânea, não pensávamos, sequer, em que tal projeto poderia ter seguimento através dos anos.

O tempo, essa coisa imensa, que não pára, que não dá tréguas, que tanto pesa sôbre costumes e usos e até mesmo transforma os mais altos escalões da ciência, da religião, das artes, reformulando princípios e doutrinas, para só deixar aquêles ensinamentos imutáveis no espaço e no tempo, que o Divino Mestre nos legou, êsse mesmo tempo vai mostrando à gente quanto é bom escrever, guardando aquelas imagens de acontecimentos por vêzes insignificantes na época, mas cheios de belos ensinamentos no futuro.

Foi o que aconteceu agora conosco, ao darmos com um pequeno papel, já amarelecido, velho, de quase cinqüenta anos de idade, no qual foram inscritos alguns versos, à guisa de boas-festas.

Era costume, antigamente, entre os trabalhadores da Companhia Taubaté Industrial, festejar-se o Natal de um modo um tanto ou quanto diverso daquele que hoje nós vemos.

Ainda não havia sido “inventado” o Papai Noel, ou se havia isso era para a gente rica, bem-posta na vida. Nas leis trabalhistas, nem férias, nem folgas, e as horas de trabalho, em 1921, data do boletim a que nos referíamos, apenas haviam sido reduzidas 2 horas na jornada de trabalho diário que, de 10 horas, passou a ser de 8 horas, o que se deu em 1917, se não nos falha a memória.

Funcionários da CTI

Mas era um natal de amigos, de companheiros. O operário de 1921 não se integrava totalmente na sociedade, como hoje acontece. Naquele recuado tempo, logo após a guerra de1914 a1918, ser operário de fábrica era algo diferente, fora da comunhão social. Uma espécie de segregação como ainda hoje a temos, para infelicidade nossa, entre raças diferentes.

– Fulano é operário da C.T.I.

E assim definido, o homem estava condenado à inferioridade. Para os citadinos era um ente destituído de instrução, mero acidente humano, um ignorante. Mal sabiam êsse (sic) apreciadores que o operário estava construindo o mundo do futuro, a própria felicidade social da comunhão brasileira.

Mas, vejamos como procediam os trabalhadores da C.T.I., naquele já distante ano de 1921, há meio século passado. O boletim a que nos referimos tem o pomposo título de “Boas-Festas”. Está assim redigido:

BOAS-FESTAS

“Os tecelões da Fábrica de Morins e Riscados (fábrica velha) cumprimentam os seus colegas da C.T.I. pela entrada triunfal de 1921, desejando a todos paz, amor e fraternidade no decorrer do Ano Nôvo. (Em seguida, os seguintes versos):

Sejamos fortes, bem fortes
Num abraço fraternal,
Para o futuro dos nossos,
sôbre a luz universal.

Onde um dia os nossos filhos
gritarão com mais vigor,
Viva a Paz e a Liberdade!
E a Fraternidade e o Amor!

Ser operário é ser tudo
porque dêle tudo vem;
Se não houver operário,
O mundo morre também…

Que nos importa o desprêzo
Do alto mundo social?
A ignorância espalhou-se
Pelo Mundo Universal

Se o preconceito do Mundo,
tentar passar sôbre nós,
Ergueremos nossas fontes,
gritando a uma só voz:

Sou operário e tenho orgulho
Trago a fronte bem altiva
Pois sem nós, o próprio Mundo
não se move, não se ativa…

Aos jovens maçaroqueiros
um a adeus bem apertado.
Também à Turma da Noite,
E em geral ao operaridado!”

Aí estão os versos, escritos em 1920, no último dia do ano, saudando o evento de 1921. Versos queixosos mas cheios de esperança.

Assim agiam os nossos maiores, os trabalhadores que um dia seriam chamados de “pilares que se chama Brasil” (slogan político muito usado pelos postulantes a votos eleitorais).

Naquela época, porém, havia o preconceito. Havia a separação. A escravidão negra terminara em 1888, mas os brancos, lutadores pelo pão nosso de cada dia, continuariam ainda, por mais de 30 anos, ouvindo aquêle estribilho indesejável e desumano:

– Fulano é operário da C.T.I.

Funcionários da CTI

Usos e costumes de uma época. Saudade de um tempo em que os homens se uniam em suas desesperanças, para tirarem dela o amor e o carinho pelos seus companheiros, na luta continuada e sem tréguas por um mundo melhor, mais compreensivo, mais humano também.

Êsse mundo chegou com a metade de século vinte. Hoje já não há mais segregação. Todos são iguais. Iguais não! Há muita gente por aí, de gravata e colarinho, que não vale a metade de um trabalhador de fábrica, de usina, porque, amigos, enquanto uns vivem uma vida ociosa e sem finalidade alguma, outros estão construindo, à sombra da lei e da ordem e do progresso também, êste imenso e maravilhoso país, que se chama Brasil!

Que fique êste registro nas páginas do nosso livro da saudade. Revivendo uma época, e com ela usos e costumes, estamos contando aos hodiernos a maravilha que é a união, a amizade, o amor recíproco, o respeito, enfim, a todos os que lutam pelo mesmo bem, pelo amor à Pátria comum.

[box style=’info’] Emílio Amadei Beringhs


Desde menino foi funcionário da CTI. Atuou por mais de 50 anos no jornalismo taubateano, descreveu com maestria o cotidiano taubateano. Integrou o Instituto Geográfico de São Paulo. Foi um dos pioneiros do rádio amadorismo no Vale. Na radiodifusão convencional, foi responsável, junto com Alberto Guisard, pela pioneira Rádio Bandeirantes. Em 1941, foi co-fundador da Rádio Difusora de Taubaté. Foi sócio fundador do Aero-Clube de Taubaté. Em 1967, escreve o primeiro volume do obrigatório livro Conversando com a Saudade, descrito por muitos como pedaços da alma de Taubaté. É, também, de sua autoria, a bandeira de Taubaté.  [/box]

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