O JARDIM

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 “Não importa que a tenham demolido.  A gente continua morando na velha casa em que nasceu”  Mario Quintana

Parece que foi ontem, mas já se foram sete décadas.

E, ainda hoje, em frente à estação, indiferente ao tempo e ao vazio que ficou sem o nostálgico apito das locomotivas, lá está o jardim de nossa infância, o Jardim da Estação. A periferia, totalmente transfigurada, não é mais aquela que nossa memória guardou. Mas, como não lembrar, com certa tristeza, da vendinha do velho Inocêncio na esquina da Anízio Ortiz?! Enquanto atendia a pequena clientela, ele não desgrudava do cigarrinho de palha e sua especialidade, executada com muita precisão, era arremessar palitos acesos em nossos pés. Não errava uma! Habilidade que aprimorou ao longo do tempo, alavancada por nossas costumeiras provocações.

Com as freqüentes idas ao Jardim passamos a conhecer novos amigos. Eles residiam ali mesmo, no entorno ou bem próximos.  Da família Tavares, Djalma era o bom amigo, o páreo duro no jogo das bolinhas de vidro. Quando partiu para estudar medicina no Rio de Janeiro deixou-nos a tristeza de sua ausência, mas a certeza de que a cidade ganharia um bom médico. O João, da família Monteiro, que nós apelidamos de “sinistro”, era mais velho, calado, meio estranho. Ele surgia, como por encanto, falava pouco e, sem que a gente notasse… desaparecia! Ué, Cadê o João? Tinha o Tião, um anãozinho danado de inteligente. Andava com livros e cadernos colados à axila. Brevemente seria um contador. Cursava na mesma Escola onde meu irmão se formou e da qual fui expulso, mais tarde, à bem da disciplina. É que uma professora estrábica se dirigiu a mim olhando para um lado diametralmente oposto. (pensei: não vou perder essa piada!) Fiquei estático, como se não fosse comigo” É com o senhor, mesmo, que estou falando!” Claro, sabia que era comigo, mas olhei novamente na direção oblíqua de seu olhar; a classe começou a rir… Pronto!  Deu no que deu! Mais tarde, claro, pedi desculpas à mestra e senti alivio por constatar que matemática não era meu forte.   Inesquecíveis as descobertas naquela idade. Foi o anãozinho Tião quem nos segredou onde ficava o majestoso tamarindeiro, a caneleira com sua apreciada casca e os cajueiros muito produtivos e bem camuflados pela vegetação. Será que ainda existem?

Jardim da Estação, anos 30. Acervo DMPAH
Jardim da Estação, anos 30. Acervo DMPAH

Na mesma calçada do velho que queimava nossos pés havia a casa dos Vilela onde morava Noé, o menino que usava aparelho de metal em uma das pernas. Para seu infortúnio e de muitas crianças em todo o mundo, o doutor Sabin ainda não havia lançado a vacina contra a paralisia infantil.

À seguir vinha a casa dos CAMILHER, com Décio, Homero e JOBERTO perfilando em  nosso rol de amigos .  E, por último, uma construção recuada, bem antiga, (lembrava uma ruína romana). Ali morava uma das criaturas mais odiosas da cidade: “O homem da Carrocinha”, o “Laçador de Cachorros”. Provocava um alvoroço quando em atividade. Os vizinhos se comunicavam e, para salvaguarda geral, os animais eram recolhidos rapidamente se estivessem na rua. A partir daí, nunca vi alguém que carregasse tanta praga, além dos cachorros! Dizem que morreu ganindo.

Na outra esquina, Rua das Palmeiras, (Conselheiro Antonio Moreira de Barros) havia um bar que vendia um bolinho salgado, conhecido como granada. Tinha forma esquisita e impressionante elasticidade. Mesmo depois de amassado, voltava rápido à posição normal e também pulava como bola se fosse ao chão! A primeira abocanhada, como não podia deixar de ser, ocorreu com justificado receio. O fato é que alguma magia envolvia aquela “coisa’, fazendo com que nosso dinheirinho convergisse, invariavelmente, na compra do estranho ”acepipe”. Até hoje não sabemos como e do que era feito. Mas comíamos!

O jardim da Praça Doutor Barbosa de Oliveira ocupava dois quarteirões. Na outra extremidade, bem na esquina da Rua Chiquinha de Matos, ficava o casarão das “girls”, sob a direção de Anita Garof a mais velha das prostitutas. Mesmo sem poder vislumbrar qualquer coisa relevante, mas com a curiosidade desperta, resolvemos espionar a tal casa. Decidimos que a grande árvore do terreno ao lado do Danúbio Azul seria o ponto ideal de observação e corremos para lá. A melhor posição nos galhos era disputada com frenesi!…  E se alguém despencasse seria obrigado a suportar a gozação . Com meu irmão insistindo para que eu não subisse naquela árvore, que não devia olhar tal coisa, (era o mais criança dos safadinhos) fui o primeiro a estatelar, de costas, ao segurar um galho seco com as duas mãos. Quase desfalecido pelo baque contra o solo, podia ouvir a ruidosa gargalhada que explodia por entre as folhas e lembrada até hoje pelos poucos remanescentes do episódio.

Rua Conselheiro Moreira de Barros, mais conhecida como Rua das Palmeiras. Acervo DMPAH
Rua Conselheiro Moreira de Barros, mais conhecida como Rua das Palmeiras.
Acervo DMPAH

Provavelmente, a baixa freqüência ao Jardim durante a noite se devesse a proximidade de tão “nefando” estabelecimento, visto por alguns com acentuada repugnância. “Onde já se viu! Prostíbulo em plena cidade!…

Também havia, junto à via férrea e voltada para a praça, uma grande usina para beneficiamento de arroz. Os resíduos soprados no pátio formavam verdadeiras montanhas de palha. Quer melhor atração?  Brincamos ali, inocentemente, sem saber que a ação nociva de parasitos seria líquida e certa. Que o diga meu irmão Cid, o primeiro a se coçar, tendo que ficar bom tempo imerso num milagroso banho de ervas preparado por nossa mãe. E, deu certo!

As atrações no Jardim da Estação ficavam por conta de retretas nas tardes de domingo; do bicho preguiça , as vezes sumido entre as ramagens; algumas aves, com destaque especial para o pavão e do incorrigível macaco Lourenço, preso na cintura por uma corda e fazendo gestos para que algumas beatas incautas esconjurassem.. Davam as costas se benzendo e balbuciando: “Que macaco sem vergonha!”

A exemplo do grande poeta Mario Quintana…

Continuamos a brincar no velho Jardim da Estação!

[box style=’info’]Celio Moreira
celioconhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.

 

 

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