A ofensiva das pulgas na Vila São José

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Por Celio Moreira

Quando cheguei, cedinho, à casa de minha avó, imaginei o alvoroço entre as pulgas, babando de satisfação, ao pressentirem que, naquele dia, o banquete  estava garantido.  Nas vezes em que meu irmão repartiu a cama comigo as picadas se dividiram.  Agora, porém, sozinho, me apresentava como única opção para o jantar das hematófagas. Da última noite em que elas atacaram sem tréguas até o amanhecer, tão cedo não vamos esquecer.  Ao despertarmos, o recibo estava consignado através dos inúmeros pontinhos de sangue estampados no lençol.

– VÓ, a gente quase não dormiu esta noite. –É mesmo? Tinha muita pulga na cama!  – Será que não vieram com vocês?!  Claro que não, VÓ!  Lá em casa não tem pulga.   Nós usamos “BOMBAS DE FLIT”.        -Tá bem, mas aqui não tem esse negócio!

flit

Provavelmente, aquele era um fato incomum – sazonal certamente.   Ou será que os bichinhos foram colocados ali para nos afugentar – sugeri ao meu irmão. – Que é isso, garoto, vovó jamais faria uma coisa desta!

Na década de trinta, na Vila São José, não havia luz. Saneamento básico, nem pensar!  No fundo do quintal, numa casinha com pouco mais de um metro quadrado de área, havia uma fossa. Tive medo nas vezes que ali entrei, pois as tábuas finas e flexíveis que a encerravam, sugeriam que a gente corria o risco de ir junto.  Mas, felizmente, era só impressão!

banho Nosso tio era um craque!  Olha só o que imaginou para um banho no capricho: uma lata cheia de furinhos e com alça que se fixava no alto a um gancho de goiabeira.  Genial!   Água não faltava. Brotava limpa e geladinha no fundo de uma cacimba com cinco ou seis metros de fundura, também obra de tio Galdino. Como não havia energia elétrica a água era retirada por um balde que descia rápido e subia soltando pingos grossos e ao som da roldana que gemia comprimida pela corda.  Quanta preocupação e cabelos brancos trouxe esse poço à nossa avó!  Agora estava com a mesma tampa de madeira, porém, presa a uma corrente e com cadeado.

Muitas vezes ela se desesperava ao ver a gente descendo por suas paredes.  Objetivo: NADAR!

– Meu São Benedito! Não façam isso! Saiam já daí!  Ah! Vou ter que contar pro ISAURO!  – O quê?! Contar pro nosso pai?!  Nem pensar!… É surra na certa! Não, VÓ, fique tranquila, a gente não faz mais isso.  A coitada não via nossos dedos cruzados na hora da promessa. Claro que tentaríamos outras vezes!

Assim que o sol mergulhava no horizonte arrastando seu brilho por detrás da Mantiqueira a Vila escurecia.  E caía em trevas quando as nuvens resolviam brincar de esconder a Lua. Vovó rompia a escuridão acendendo a velha lamparina e o cheiro de querosene e fósforo queimado impregnava o ar por alguns instantes. Na tênue claridade trazida por ela da cozinha para a sala, onde seria servido o jantar, sobressaia aquele rosto marcado pela imposição do tempo, mas assinalando a firmeza de quem cumpriu a missão de dar continuidade à família Moreira.  Vovó CAETANA – assim a chamávamos – não era mulher de se curvar diante das vicissitudes.  Toda semana ela nos visitava.  Num só fôlego, vinha dos cafundós da Vila São José até nossa casa na Rua Barão.  Uma boa caminhada sob um sol de meio dia que lhe assegurava firmeza nas pernas e saúde para enfrentar as doenças, curadas hoje com um simples comprimido, mas quase sempre fatais naquela época. Sentava, puxava o surrado leque para espantar o calor da face e depois de pronunciar a frase que se repetia em todas as vindas, (acho que vai chover…) pegava a cesta abastecida por nossa mãe e saía rápido, como um vento forte.  Mesmo que a gente dissesse que era cedo, que ficasse mais um pouco, a resposta não podia ser outra: – Não! Pode chover! E ainda tenho que passar na casa de Zeca!  Zeca era o outro filho, nosso querido Tio. Íamos até o portão com vovó e ficávamos esperando até que dobrasse a esquina para desaparecer na extensão da Avenida 9 de Julho.

pordosol

Eram cenas que afloravam em minha mente, enquanto passava por um dia recheado de brincadeiras e, também, de muito trabalho.  Fizemos uma vassoura de GUANCHUMA (conhecida, também, como GUANCHIMA), capinamos e fomos cortar taquara pelas bandas do Rio Pedregulho, a fim de trocá-las por algumas que se estragaram na cerca do galinheiro. Assim, o dia passou mais que depressa e, quando demos conta, a noite havia chegado.

jararaca

Na sala, sob a luz da lamparina, enquanto Vovó CAETANA preparava o jantar, eu e Tio Galdino recordávamos do susto que nos pregou  uma jararaca quando roçávamos o mato. O bote foi certeiro no cabo da enxada!  – Tio! Venha ver o que está enroscado aqui! Foi uma paulada só! A danada tinha quase um metro e, pra não assustar mais ninguém, recebeu merecido castigo. Ainda estrebuchava quando fomos enterrá-la bem longe da casa.  A lenha crepitava e ardia no fogão somando-se ao ruído característico de fritura a indicar que o cardápio seria o mesmo do almoço: feijão, arroz e ovo. Mas eu gostava e prorrompemos em gargalhadas quando minha barriga começou a roncar.

Após o jantar, enquanto meu tio afinava a ponta de um palito de fósforo para esgaravatar os dentes, abri a porta da frente e saí para apreciar a noite.  A sinfonia dos grilos gritava contra o silêncio, enquanto o pisca-pisca dos pirilampos tentava afugentar a escuridão. Enchi os pulmões de ar e ainda pude sentir o cheiro suave do mato que cortamos. Nada mais a fazer, senão pedir bençãos à VÓ CAETANA e ao Tio Galdino, me acomodar anestesiado pelo cansaço e nem sentir o ataque das pulgas!…

 

[box style=’info’]Celio Moreira
celioconhecido também como O Sombra, do Jornal de Vanguarda, é um dos grandes profissionais de comunicação da história do jornalismo nacional.

 

 

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