A CHEGADA DOS IMIGRANTES NO BRASIL: 120 ANOS DEPOIS

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Por Elaine Rocha

Quando aprendemos sobre a história do Brasil na escola, o capítulo que trata da chegada dos imigrantes é sempre um tanto festivo. Desde as primeiras séries primárias professores e alunos animam-se ao falar da chegada dos estrangeiros ao Brasil, em especial dos italianos, espanhóis e portugueses, mas também dos alemães, japoneses, sírio-libaneses e outros grupos menores. Em escolas ou turmas mais animadas pode-se ter verdadeiras comemorações, com decoração especial, trajes típicos, comidas tradicionais, às vezes visitantes, música e grupos de dança. A escola vira uma festa! E não apenas a escola mas cidades brasileiras dedicam dias especiais para festejar os imigrantes, com festas que atraem turistas e prolongam-se por dias.

Dá até vontade – naqueles que são 100% brasileiros – de encontrar um antepassado longínquo que a gente pudesse situar em algum canto da Europa para poder celebrá-los também. Me lembro que, aos dez anos de idade, no que naquela época era o quarto ano do Grupo, a professora quis saber quem da turma era descendente de estrangeiros e várias mãos se ergueram ao mesmo tempo em que diziam em voz alta: meu avô era italiano, minha avó veio de Portugal… E a professora ia escrevendo aqueles sobrenomes com dois “t”s ou dois “l”s na lousa. Eu queria dizer uma coisa também, naquela época não conhecia ainda a história do pai do meu bisavô, um escravo que era exímio vaqueiro lá pras bandas do Piauí, mas mesmo que soubesse, não tenho ainda hoje a menor ideia se ele havia chegado de algum lugar da África ou se era filho ou neto de africanos. Então  eu levantei a mão e disse algo que ouvia de vez em quando lá em casa: “a avó da minha avó era índia!” (Já dizia Lima Barreto que brasileiro quando quer adicionar alguma nobreza ao seu pobre e irrelevante passado arranja logo uma avó índia). Bem, a minha estratégia não funcionou: tomei uma bronca da professora que me disse pra prestar atenção na aula, que índio não é estrangeiro, e ainda ouvi as risadas dos colegas. Ah, as humilhações dos bancos de escola!

Chegada dos Imigrantes Italianos no Brasil
Chegada dos Imigrantes Italianos no Brasil

Os meios de comunicação também contribuem para a heroicização do imigrante: vejam quantas novelas já apresentaram o tema na televisão, e os filmes no cinema. Às vezes algum programa de rádio, muitas canções, e hoje em dia muitos e muitos websites e blogs dedicam-se à saga dos imigrantes no Brasil. Na história de São Paulo, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX, eles são figuras centrais, como os trabalhadores que vieram substituir o trabalhador negro escravizado. Na capital paulista são celebrados como aqueles que “construíram” a maior cidade do Brasil. E o que aconteceu aos milhares de negros que trabalharam na cafeicultura? Desapareceram subitamente dos livros de história logo depois a abolição.

Este é um grande exemplo da força das ideologias. A ideologia do branqueamento, ainda que baseada em teorias bio-genéticas sem fundamento científico sério, é uma ideologia vencedora, porque se não conseguiu branquear o país, pelo menos branqueou a história do Brasil. E nem as últimas três décadas de estudos sobre os negros no Brasil durante e após a abolição, mostrando os negros ainda nos cafezais do sudeste até a grande crise do café, em 1929, trabalhando lado a lado do estrangeiro, e ensinando-lhes o trabalho, continua a ser ignorado nos currículos das escolas e na maioria dos meios de comunicação (exceção feita para uma novela da Globo que explorou – limitadamente – o tema na cidade do Rio de Janeiro). Quanto à urbanização de São Paulo,  o trabalho da construção civil e todos os outros trabalhos de infra-estrutura e mesmo na história do comércio, no setor de serviços e na indústria nascente, os negros são invisíveis. A expressão: “São Paulo foi construída pelos imigrantes” é muito popular, ainda que fotografias antigas mostrem negros e mulatos trabalhando na construção do Viaduto do Chá, por exemplo, ao lado de trabalhadores brancos (estrangeiros?).

Chegada dos imigrantes Japoneses no Brasil, mais de um seculo atrás.
Chegada dos imigrantes Japoneses no Brasil, mais de um seculo atrás.

Nos últimos anos, o crescimento econômico brasileiro tem recrutado mão de obra estrageira qualificada em outros países e novamente damos as boas vindas a imigrantes vindos dos Estados Unidos, de Portugal, da Espanha. Muitas vezes recrutados diretamente pelas empresas interessadas em seu trabalho, com benefícios que colocam seus ganhos acima dos brasileiros. A história se repete?

Mais ou menos, porque este tipo de imigrante causa pouco alarde e não tem sido destaque nos noticiários. Agora, a polêmica da imigração volta mesmo à baila é na questão do imigrante indesejado: chineses entrando silenciosamente nas capitais e nas cidades do interior, abrindo seus restaurantes apesar das reclamações dos vizinhos de que não respeitam as normas sanitárias e de higiene, os bolivianos chegando em levas na cidade de São Paulo, que também tem recebido muitos argentinos, mas desses a gente gosta, até achamos bonitos. E o mais perigoso: os imigrantes negros.

No passado havia lei proibindo a entrada de certos imigrantes, em especial dos negros, e havia mecanismos para barrar essa imigração. Mas hoje estamos em pleno século XXI e se os brasileiros sempre se gabaram de não serem racistas, agora então temos as cotas, as ações afirmativas, temos um Joaquim Barbosa, amamos o Obama. Entretanto, o imigrante negro ainda nos assusta, porque não é o que esperávamos enquanto trabalhador estrangeiro e neste momento o Brasil percebe que nem de longe conseguiu superar os preconceitos alimentados contra o trabalhador negro e indígena desde os tempos da colonização e da nossa fé no eugenismo.

haitianos
Fonte: oglobo.globo.com/infograficos/caminho-ate-brasil/

Imigrantes negros têm chegados ao país na última década, vindos de países africanos como Angola, Nigéria, Senegal, Moçambique e ultimamente em grande número do Haiti. Enquanto os africanos entram diretamente nos aeroportos de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, os haitianos – mais pobres – seguem uma rota parecida com a dos bolivianos, entram pelas fronteiras do oeste, em especial cruzam do Peru para o estado do Acre, onde ficam por tempos em pequenas cidades como Brasiléia, na fronteira do Brasil com a Bolívia, muito próxima também do Peru.

Haitianos no Hotel Brasiléia, no Estado do Acre. Foto: Marcello Casal Jr/ABr
Haitianos no Hotel Brasiléia, no Estado do Acre. Foto: Marcello Casal Jr/ABr

Nesta cidade, que em 2010 contava com pouco mais de 20 mil habitantes, imigrantes negros haitianos chegam a cada dia. Como no passado, alguns têm qualificações profissionais, muitos não as têm, alguns têm documentos e buscam trabalho especializado, outros não têm nada, deixaram documentos e dinheiro nas mãos dos chamados “coiotes” e tentam apenas encontrar um lugar para sobreviver. A cidade, a região e o estado entram em estado de alerta, transformado já em “estado de emergência” pelo governador acreano. Entre os receios infundados: Eles vêm todos contaminados com AIDS! Isso vai aumentar a criminalidade na região! O tráfico de drogas vai ficar mais intenso! Vão praticar o Vudu… Entre os receios com fundamento: a cidade não possui estrutura para abrigar os imigrantes que chegam a cada dia; o sistema de saúde da região é precário e muitos estão chegando doentes; não há empregos na região para toda essa gente.

Haitianos no Hotel Brasileia. Joel Silva/Folhapress
Haitianos no Hotel Brasileia. Joel Silva/Folhapress

Os meios de comunicação, falhos na pesquisa histórica esquecem-se de quanto imigrantes europeus chegaram ao Brasil a cerca de 100 anos atrás trazendo consigo a tuberculose, as gripes e outras doenças que causaram epidemias. E quantos deles eram analfabetos ou semi-analfabetos, quantos não possuíam qualificação profissional além do instinto de sobrevivência?

Os problemas no norte se acumulam: prefeituras da região amazônica se recusam a aceitar imigrantes haitianos, o governo brasileiro tem limitado o número de vistos e permissão para trabalho, alguns poucos conseguem ser recrutados por empresas, e a maioria sonha em chegar até São Paulo, a meca do desenvolvimento. Os paulistas, que já têm que lidar com os bolivianos – outro grupo de imigrantes considerados como de quinta categoria: pobres, pouco qualificados e com feições de índios – arrepiam-se só em pensar.

[colored_box color=”grey”]Veja matéria de O Globo sobre os imigrantes haitianos no Acre

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Parte dos argumentos são corretos: o Brasil ainda enfrenta sérios problemas sociais, sérios problemas de infra-estrutura, grande parte da população não tem acesso a serviços essenciais como água e esgoto, a questão da saúde pública é outra crise que também se insere na questão imigratória: vamos aceitar os médicos imigrantes sem exigir a devida qualificação local, que todos os países requerem e que está diretamente ligada ao bom atendimento – falar a língua local, por exemplo, e saber o equivalente local para a medicina necessária e mesmo as nossas mazelas – sem melhorar a estrutura hospitalar e de diagnósticos? Ah, mas eles são médicos, e a maioria tem a pele clara, a gente deveria aceitar.

Imigrantes Haitianos empregados em Manaus
Imigrantes Haitianos empregados em Manaus

A questão humanitária se impõe como maior prerrogativa para alguns, que argumentam que o país não deve fechar as portas aos pobres; outros argumentam em favor de trabalhar na qualificação dos trabalhadores nacionais, com melhores escolas e melhores professores com melhores salários, por exemplo. Este argumento é um outro que já completou 100 anos, e do qual Lima Barreto era um defensor. Ele era um dos que dizia que a solução para o Brasil era investir na sua própria gente, ao invés de trazer estrangeiros. Investindo nos brasileiros – segundo ele e outros de sua época – combateríamos a marginalidade e a pobreza resultantes do desemprego e do subemprego.

Imigrantes haitianos cruzando ponte entre Acre e Peru
Imigrantes haitianos cruzando ponte entre Acre e Peru

O fato é que o Brasil não pode acomodar toda a população carente do Haiti, ou da Bolívia, ou de Angola, por exemplo. E precisa, urgentemente, atacar os problemas internos do país se quiser criar uma economia forte com uma sociedade equivalente e uma distribuição de renda menos desigual. Ainda assim, devemos pensar bem antes de atacar o imigrante que não vem da Europa ou dos Estados Unidos, ou melhor: que não é branco, com cabelos e olhos claros.

Preconceitos à parte, o imigrante negro e o elemento indígena têm construído este país há mais de 500 anos, a maior parte deste tempo contra a sua própria vontade, levado de um lugar para o outro, mal pago, mal alimentado e mal educado. A política imigrantista deve ser discutida amplamente e votada, independentemente de cor ou classe. Afinal, a nossa Justiça é ou não é cega?

 

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Elaine P. Rocha é historiadora formada pela Universidade de Taubaté, com mestrados pela PUC de São Paulo e University of Pretoria, África do Sul, e doutorado em história social pela USP. Professora de História da América Latina na University of the West Indies, Barbados.

 

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