O FUHRER NÃO GOSTA DE JAZZ: QUANDO RESISTIR VAI ALÉM DO VISÍVEL

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Há alguns dias assisti ao filme de Thomas Carter, Os Últimos Rebeldes (1993). O título original é muito mais revelador: Swing Kids. Somos convidados a visitar a Alemanha de meados da década de 1930 através da perspectiva de jovens que adoram ragtime, jazz e afins. Cada um destes rapazes tomará um rumo inesperado quando o nazismo inicia sua escalada totalitária.

Thomas (Christian Bale) abraça os mandamentos do fuhrer enquanto Arvid (Frank Whaley) se enoja de tal maneira diante da nova realidade que decide não mais vê-la. Peter (Robert Sean Leonard) representa o meio termo: não concorda com as diretrizes nazi-fascistas, mas ainda assim se encontra na Juventude Hitlerista. O motivo maior de sua permanência é muito mais o prestígio e o sustento da família que propriamente a ideologia. Mas chegará uma hora em que não consegue mais seguir com esta farsa. Nesse momento, Peter se liberta do uniforme e vai ao cabaré.

Christian Bale em cena de Swing Kids. Fonte: MovPins
Christian Bale em cena de Swing Kids. Fonte: MovPins

Pode parecer ridículo alguém responder a um problema político com uma noite de diversão, mas vamos refletir um pouco. Num contexto sufocante como a consolidação do III Reich, explicitar sua preferência por um ritmo musical jovial e de nítidas influências afro-americanas pode tomar os ares de uma afronta política.

Acredito que um dos méritos desse filme é essa defesa da cultura como um campo comprometido socialmente. Ainda que pareça apenas se tratar de uma diversão juvenil, o andar da carruagem demonstra para os protagonistas que se trata de algo mais. Arvid tem mais claramente essa percepção e seus desabafos após um show frustrado podem muito bem fazer coro com as observações de Walter Benjamin.

Benjamin, para quem não sabe, foi um filósofo alemão que circulou tanto pela academia, como pelos cafés e becos escuros de Berlim. Seria bem provável que Arvid, Peter e Thomas esbarrassem com ele em algum cabaré. Dono de uma erudição invejável e uma escrita poderosa, Walter Benjamin tinha uma visão peculiar da História que muito nos interessa. Em seu ensaio de sete páginas – sete páginas que abalaram o mundo da historiografia – chamado Teses Sobre o Conceito de História, afirma que a História que temos é a história dos vencidos, digamos assim, e que a função do historiador seria revelar a barbárie e resgatar a experiência dos vencidos.

Robert Sean Leonard e Thomas Carter no filme Swing Kids. MovPins
Robert Sean Leonard e Thomas Carter no filme Swing Kids. MovPins

O grande problema é que, para tanto, o historiador deve se usar de outras fontes. Com efeito, deve se utilizar de outros métodos. Métodos ligados a sensibilidade. A arte, para Benjamin, é uma lente muito preciosa ao historiador. Ela diz respeito à afetos atemporais e datados. Mais que isso: a arte também carrega em si um compromisso. Não apenas o compromisso com os próprios padrões artísticos, mas o compromisso com a sociedade. O dever de lutar contra a exploração ou barbárie.

Sabemos muito bem que a arte não é ingênua. Foi-se o tempo em que o mundo poderia ser dividido em engajados e alienados. Hoje questiona-se: o que é ser “engajado”? O que é ser “alienado”? Só existe forma de luta verdadeira dentro da política partidária ou do sindicalismo? Ao final do século XX, historiadores, filósofos e sociólogos concordavam em uma coisa: a realidade é mais complexa do que parece. Na área de História tivemos muitos estudos voltados para essa nova percepção, mas quero salientar aqui os trabalhos de Edward Palmer Thompson. O historiador britânico em sua Formação da Classe Trabalhadora Inglesa surpreende por abordar muito menos os sindicatos que as organizações de lazer ou mesmo os cultos religiosos frequentados pelos trabalhadores. Em Costumes em Comum encontramos um nexo de explicação na confusa economia moral dos camponeses ingleses do século XVIII: trata-se de uma resistência á economia racional e liberal imposta pelos burgueses.

Walter Benjamin
Walter Benjamin

Thompson, em A Miséria da Teoria, reafirma a força do materialismo dialético e o mérito de Karl Marx ao fornecer á História um método adequado à sua complexidade – não só do ponto de vista temporal, quanto social – , mas destaca uma grande ausência na tradição historiográfica marxista: a experiência. Sim, o universo de pensamentos, afetos e lembranças que formam a vivência do sujeito histórico é um aspecto que deve ser explorado pelo historiador porque além de conferir materialidade a sua pesquisa, ajuda a entender melhor a dinâmica do processo e da trajetória pessoal na História.

Robert Sean Leonard em cena de Swing Kids
Robert Sean Leonard em cena de Swing Kids

O passado é uma discussão sobre valores, diria Thompson. O que implica dizer que a cultura não é uma mera super-estrutura, um aspecto menor dentro do processo histórico. Pelo contrário, ela é também um campo de batalhas, assim como também pode ser um recanto seguro para o lazer ou para a dominação. A cultura é plural. Isto nos ajuda a entender a dialética consciência/alienação de formas diferentes.

Os sujeitos históricos lutam de muitas formas e por vários motivos (sobrevivência, ideologia, trabalho, etc). Então o foco dos estudos se direciona para a resistência implícita, aquela que não se nomeia com todas as letras. Assim, a morte de alguns gatos em uma gráfica francesa pode ser sinal não só de sadismo, mas de uma tensão social, como nos demonstra Robert Darnton. Um escravo dizer impropérios a todos os transeuntes do alto de uma árvore pode significar mais que desabafos aleatórios após um dia difícil. Sidney Chalhoub encontra no episódio uma crítica à sociedade escravista carioca, ainda que possa parecer dor de cotovelo de início. Dançar um bom ragtime em um cabaré, portanto, pode ser um atentado contra a barbárie. Um atentado divertido, mas ainda assim um atentado.

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Vinicius Alves do Amaral é licenciado em História pela Uninorte.

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